Tomada de decisão apoiada: reflexões sobre a constituição da relação de apoio à pessoa com deficiência
Autor | Thiago Rosa Soares |
Páginas | 127-144 |
TOMADA DE DECISÃO APOIADA:
REFLEXÕES SOBRE A CONSTITUIÇÃO DA
RELAÇÃO DE APOIO À PESSOA
COM DEFICIÊNCIA
Thiago Rosa Soares
Sumário: 1. Introdução – 2. Origem e função da TDA – 3. Caráter contratual: limites à vontade declarada
no termo de apoio; 3.1 Parâmetros de análise do intérprete; 3.2 Apoiadores e apoiado;3.3 Atos de natureza
existencial; 3.4 Representação; 3.5 Poderes do juiz – 4. Críticas doutrinárias ao instituto – 5. Conclusão.
1. INTRODUÇÃO
Em 2022, o Estatuto da Pessoa com Deciência (EPD), instituído pela Lei 13.146,
ordenamento jurídico trazidas pelo diploma legal, merece especial atenção a tomada de
decisão apoiada (TDA). Trata-se de novo instituto destinado a propiciar às pessoas com
deciência intelectual2 o apoio de que precisam praticar atos da vida civil, afastando a
associação relativamente comum entre esse tipo de deciência e a incapacidade (abso-
luta ou relativa). A inovação, que pode ser considerada uma mudança paradigmática,
pretende efetivar uma importante política pública por meio do Direito Civil: garantir
maior autonomia à pessoa com deciência.
O nobre desiderato do legislador coloca o intérprete diante dois desaos. O primeiro
consiste em operacionalizar essa política pública, considerando que a disciplina legal
do novo instituto é demasiado genérica. O segundo, em superar o manejo exclusivo dos
tradicionais institutos da incapacidade e da curatela, para a tutela dos direitos e interesses
da pessoa com deciência.
A TDA é uma relação jurídica, na qual duas pessoas (os apoiadores) prestam à
pessoa com deciência (denominada pessoa apoiada ou apoiado) o apoio necessário
ao exercício de atos da vida civil. Essa relação se constitui pela vontade das partes
envolvidas, desde que revestida da formalidade prevista em lei: a observância de
1. O art. 127 da Lei previa sua vigência após decorridos 180 dias da publicação ocial, que ocorreu em 07 de julho
de 2015.
2. Importante salientar, ainda, a opção terminológica por deciência intelectual, evitando-se o uso da expressão
deciência mental ou distinções como deciência psíquica ou cognitiva, todas abrangidas pelo termo antes
referido. Pouco importa a classicação médica, o Direito deve trabalhar com as funcionalidades de compre-
ensão e expressão da vontade. Cf. SASSAKI, Romeu Kazumi. Atualizações semânticas na inclusão de pessoas:
deciência mental ou intelectual? Doença ou transtorno mental? Revista Nacional de Reabilitação, ano IX, n.
43, mar./abr. 2005.
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procedimento de jurisdição voluntária. Simplicando a terminologia, empregaremos
a expressão relação de apoio. O Código dispõe também de algumas regras sobre a
extinção dessa relação.
Assim, podemos distinguir três momentos da TDA: (1) o de sua constituição (ou
formação), em que é importante avaliar seus elementos e requisitos; (2) o da relação em
si considerada, na qual importa distinguir a situação jurídica das partes e (3) o de sua
extinção. Este artigo se dedica à constituição da relação de apoio, analisando sua natureza
jurídica, os limites às cláusulas que podem constar do termo de apoio e a atuação judi-
cial nesse processo formativo. A tímida disciplina legal desse momento da TDA torna
oportuna a reexão sobre as controvérsias que envolvem a matéria. A análise proposta
impõe algumas considerações prévias sobre a origem e função do instituto.
2. ORIGEM E FUNÇÃO DA TDA
A TDA surge para atender ao preceito da Convenção sobre os Direitos da Pessoa
com Deciência (CDPD), que determina aos Estados signatários o reconhecimento da
capacidade legal das pessoas com deciência em igualdade de condições com as demais
pessoas. Essa regra, constante do art. 12 da Convenção abrange tanto a capacidade de
direito quanto a capacidade de fato. Esse ponto foi amplamente discutido durante das
sessões destinadas à elaboração do texto3 e detalhado, posteriormente à entrada em
vigor do diploma internacional, em comentário do Comitê sobre os Direitos da Pessoa
com Deciência (CteDPD).4
O objetivo era o de afastar institutos que suprimissem a autonomia da pessoa, que
promovessem a substituição de sua vontade. Para a CDPD, dever-se-ia empregar um
sistema de apoio decisório. Nesse sentido, o item 3 do art. 12 estabelece o seguinte:
Artigo 12 [...] 3. Os Estados Partes tomarão medidas apropriadas para prover o acesso de pessoas com
deciência ao apoio que necessitarem no exercício de sua capacidade legal.
3. Segundo Augustina Palacios, a capacidade legal foi o tema mais debatido durante o processo de elaboração
da CDPD, iniciando-se na terceira das oito sessões destinadas à elaboração do texto. A possibilidade de legal
capacity referir-se somente à capacidade de direito foi aventada diversas vezes pelos Estados participantes; a
questão foi pacicada por ocasião da apresentação de informe do Alto Comissariado das Nações Unidas para
os Direitos Humanos, que esclareceu referir-se a expressão tanto à titularidade quanto ao exercício dos direitos
no direito internacional e no direito comparado. Apesar das divergências surgidas nos debates, o texto do art.
12 foi aprovado, cientes os Estados Partes do signicado da expressão capacidade legal (PALACIOS, Augustina.
El modelo social de discapacidad: orígenes, caracterización y plasmación en la Convención Internacional sobre los
Derechos de las Personas con Discapacidad. Madrid: Cinca, 2008. p. 419, 437, 451-453).
4. No Comentário Geral 1, sobre o art. 12 da CDPD, o Comitê posiciona-se rmemente sobre o tema: “Capacida-
de legal e capacidade mental são conceitos distintos. Capacidade legal é a aptidão para ser titular de direitos e
deveres (legal standing) e para exercer esses direitos e deveres (legal agency)”. Tradução livre de: “Legal capacity
and mental capacity are distinct concepts. Legal capacity is the ability to hold rights and duties (legal standing)
and to exercise those rights and duties (legal agency)” (ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. General
comment 1 (2014): Article 12: equal recognition befor the law. Disponível em: https://documents-dds-ny.un.org/
doc/UNDOC/GEN/G14/031/20/PDF/G1403120.pdf?OpenElement. Acesso em: 24 ago. 2019).
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