Os princípios da legalidade e da razoabilidade. A interdição de arbitrariedade

AutorJuan Carlos Cassagne
Páginas211-247
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CAPÍTULO IV
OS PRINCÍPIOS DA LEGALIDADE
E DA RAZOABILIDADE. A INTERDIÇÃO
DE ARBITRARIEDADE
Sumário: IV.1 O princípio da legalidade. IV.1.1 Precisões conceituais.
IV.1.2 Legalidade e legitimidade. Distintas formulações do princípio da
legalidade. IV.1.3 Legalidade e reserva legal. A chamada preferência de
lei. IV.2 Poder discricionário e arbitrariedade. IV.3 A interdição de
arbitrariedade no direito argentino. IV.4 O princípio da razoabilidade
como fundamento da proibição de arbitrariedade. IV.4.1 Aspectos da
razoabilidade. IV.4.2 Razoabilidade e igualdade. A razoabilidade
ponderativa. IV.4.3 Devido processo substantivo e devido processo
adjetivo no direito norte-americano. A equal protection. IV.4.4 O princípio
da proporcionalidade. Subprincípios que integram o princípio da
proporcionalidade nas doutrinas alemã e espanhola. IV.5 Em direção a
uma resposta jusnaturalista centrada no bem humano: a diretriz de
interpretação preponderante que deveria reger a hermenêutica do art. 28
da Constituição Nacional. IV.6 A interdição de arbitrariedade. A
inconstitucionalidade de ofício. IV.6.1 O artigo 43 da Constituição
Nacional prevê um mandamento implícito. IV.6.2 A inconstitucionalidade
de ofício. IV.6.3 A declaração judicial oficiosa da inconstitucionalidade
das leis na jurisprudência da Corte.
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JUAN CARLOS CASSAGNE
IV.1 O princípio da legalidade
IV.1.1 Precisões conceituais
No modelo de Estado que surgiu a partir da Revolução Francesa,
o princípio da legalidade significava, fundamentalmente, o monopólio
atribuído ao parlamento para ditar normas gerais e obrigatórias (legi-
centrismo) que implicava, além do mais, o submissão do Executivo à lei.
Esse modelo alcançou uma projeção generalizada no direito cons-
titucional europeu e, apesar dos inconvenientes teóricos propostos pela
diversidade de suas fontes doutrinárias, acabou afirmando-se na era do
positivismo legalista.
Entretanto, um problema – não menor – foi traçado ao se cons-
tatar a insuficiência da lei para regular todos os casos possíveis originados
a partir de mudanças econômicas, sociais e tecnológicas. Da simples
função do Executivo de aplicar normas através do exercício do poder
regulamentar passou, inicialmente, ao reconhecimento de atribuições
delegadas (o que ocorreu também no direito norteamericano), logo após
à admissão de potestades excepcionais de urgência para reger casos que
anteriormente eram apenas patrimônio das leis, até, finalmente, condu-
zir desembocar no reconhecimento, em alguns ordenamentos constitu-
cionais, de uma zona reguladora independente a favor do Executivo ou
de uma função reguladora residual, quando o Parlamento não legisla
sobre uma determinada instituição ou situação geral (por exemplo, o
caso da França, a partir da Constituição de 1958).
A este processo de fragmentação do princípio clássico da legali-
dade, que atribuía o monopólio da lei (legicentrismo) ao Legislativo, foi
acrescentado a criação de normas por entidades não estatais de caráter
público (v.g. , Colégios Profissionais), bem como com autorregulações
que emanam de pessoas privadas (v.g ., Bolsas e Mercados de Valores) e, n
na área trabalhista, com as chamadas Convenções Coletivas de Trabalho,
que costumam conter normas de Direito Público.
Por sua vez, o positivismo legalista, fortemente influenciado por
Kelsen, entrou em crise, o que provocou o retorno à justiça material,
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CAPÍTULO IV – OS PRINCÍPIOS DA LEGALIDADE E DA...
através de concepções diferentes das sustentadas pelo direito natural
racionalista, como a tópica566 e a técnica de comaltar as lacunas legisla-
tivas com os princípios gerais do direito. Retorna-se, de alguma forma,
à concepção de tradicional da lei, baseada em um dualismo que possibi-
lita distinguir a positividade da norma da justiça (lei positiva e lei natu-
ral), o qual levou à submissão da Administração tanto à lei positiva
quanto aos princípios gerais do direito.
Dessa forma, apesar de a Administração ter de exercer sua potes-
tade com base em uma habilitação outorgada previamente pela lei (po-
testades que podem surgir de normas expressas ou implícitas ou ineren-
tes), a lei positiva deixou de ser o centro do sistema jurídico, já que o
clássico bloco de legalidade sobre o qual falava Hauriou (integrado pela
lei e costume) também se integra principalmente com os princípios
gerais do direito567, que se expandem e desenvolvem de extraordinária568,
prevalecendo sobre as leis positivas.569
O processo descrito, caracterizado pela decadência do legicentris-
mo e a necessidade de uma vinculação com a justiça material570, s e
completa, nos países da Europa continental, com o fenômeno da cha-
mada constitucionalização da legalidade571, ao se ter incorporado à
Constituição numerosos princípios e declarações de direitos que atuam
566 Ver: SILVA TAMAYO, Gustavo. Desviación de poder y abuso de derecho. Buenos Aires:
Lexis-Nexis, 2006, p. 25 ss.
567 MUÑOZ MACHADO, Santiago. Tratado de derecho administrativo. 2ª ed. tomo I.
Madrid: Iustel, 2006, p. 420.
568 Ver: COVIELLO, Pedro J. J. “Los principios generales del derecho frente a la ley
y al reglamento en el derecho administrativo argentino”. ReDA, Buenos Aires: Lexis-
Nexis, n. 62, 2007, p. 1088 ss.
569 Conforme defendemos em trabalho anterior “Los principios generales del derecho
en el derecho administrativo”. Separata da Academia Nacional de Direito e Ciências
Sociais de Buenos Aires, 1988, p. 34; ver também: BIELSA, Rafael. Metodología jurídica.
Santa Fé: Castellví, 1961, p. 102 ss.
570 GARCÍA DE ENTERRÍA, Eduardo. Reflexiones sobre la ley y los principios generales
del Derecho. Madrid: Civitas, 1984, p. 39.
571 MUÑOZ MACHADO, Santiago. Tratado de derecho administrativo. 2ª ed. tomo I.
Madrid: Iustel, 2006, p. 403 ss.

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