Capítulo 1 - Direito fundamental de herança

Páginas1-24
Capítulo 1
DIREITO FUNDAMENTAL DE HERANÇA
Sumário: 1.1 O conceito de herança e necessidade de distingui-la de outros direitos
sucessórios – 1.2 O direito de herança: titulares e natureza jurídica – 1.3 O direito
de herança e a evolução histórica dos direitos fundamentais – 1.4 Ponderação
do direito de herança com outros direitos fundamentais – 1.5 Uma nova postura
hermenêutica diante da demanda por maior liberdade no âmbito do direito das
sucessões – 1.6 Notas conclusivas ao primeiro capítulo.
1.1 O CONCEITO DE HERANÇA E NECESSIDADE DE DISTINGUI-LA DE
OUTROS DIREITOS SUCESSÓRIOS
É preciso distinguir, conceitualmente, herança e sucessão.1 Sucessão consti-
tui o direito por força do qual a herança é devolvida a alguém, enquanto herança
refere-se ao acervo de bens transmitidos por ocasião da morte. Trata-se do “côm-
puto de bens, estraticando a existência de patrimônio, legado por alguém com
o seu falecimento”,2 ao passo que a sucessão “é destarte a aquisição da herança
cujo objeto é a universalidade de direitos do sucedido (ou defunto): universum
jus quod defunctus habuerit .3
Nessa senda, a doutrina lusitana é particularmente esclarecedora:
A herança foi, ao longo dos tempos, denida de formas várias: encontramos, um pouco, em
todo o tempo e espaço, a herança denida como o conjunto de bens deixado pelo autor da
sucessão ou, pelo menos, no sentido líquido de activo depurado das dívidas. No primeiro
sentido, temos a denição de CÍCERO, de que hereditas est pecunia quae morte alicuius ad
quemquam perveniat jure; no segundo, por exemplo, a denição constante das Partidas,
de que herencia es heredar home los bienes e los derechos de algunt nado; sacando ende las
debdas que debia, e las cosas agenas que hi fallasen. A esta visão correspondem, também, os
1. Não se desconhece quem trate como sinônimos as palavras sucessão e herança, a ponto de também
se aludir à expressão “direito das heranças” (Cf. FRANÇA, Rubens Limongi (Coord.). Enciclopédia
Saraiva do Direito. São Paulo: Saraiva, 1977, v. 26. p. 67). Porém a sinonímia é equívoca, pois sucessão
é qualquer transmissão de certo direito de um sujeito a outro.
2. FRANÇA, Rubens Limongi (Coord.). Enciclopédia Saraiva do Direito. São Paulo: Saraiva, 1977, v. 41.
p. 1.
3. FRANÇA, Rubens Limongi (Coord.). Enciclopédia Saraiva do Direito. São Paulo: Saraiva, 1977, v. 71.
p. 145.
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O DIREITO FUNDAMENTAL DE HERANÇA • Mário Luiz DeLgaDo
2
provérbios castelhanos antes es pagar que heredar, e no hay herencia sino en el residuo, e o
português enquanto há dívidas, não há herança (ou não há herdeiro).
O sentido que acabou por prevalecer, em consonância com a noção romana, foi o de incluir
também o passivo na noção de herança. Arma-se, assim, que ‘Hereditas est nomen iuris
comprehendens nomina, e, mais tarde, que ‘he propriamente a universalidade de bens de
hum defunto com os seus encargos. Ella comprehende os seus bens moveis, e de raiz, os
direitos, e acções que lhe pertencem, as dividas que elle contrahio, e encargos a que estava
obrigado. A herança tomada nesta accepção he hum direito incorporal’.
Foi esta noção explicitamente adoptada pelo Código de Seabra, ao dispor que ‘A herança
abrange todos os bens, direitos, e obrigações do auctor d´ella, que não forem meramente
pessoaes, ou exceptuados por disposição do dito auctor, ou da lei’, e é também essa a que
resulta do Código actual.4
Em resumo, enquanto a “sucessão é o chamamento à titularidade das relações
jurídicas patrimoniais de uma pessoa falecida, activas e passivas (artigo 2024.º),
o que implica que a herança possa ser decitária, ou reduzir-se, mesmo, apenas
a passivo”,5 a herança propriamente dita “é a universalidade dos bens que alguém
deixa por ocasião de sua morte, e que os herdeiros adquirem. É o conjunto dos
bens, o patrimônio, que alguém deixa ao morrer”.6
Essa distinção já era levada em consideração desde a Consolidação das Lei
Civis de Teixeira de Freitas, quando no seu art. 352 estabelecia que “[a]s heranças
de pessoas vivas não podem sêr igualmente objecto de contracto”, mas no art.
353 previu que “[s]ão nullos todos os pactos successorios, para succedêr, ou não
succedêr, ou sejão entre aquelles, que esperão sêr herdeiros; ou com a propria
pessoa, de cuja herança se trata” e no art. 354 armou que “[n] ão é applicavel a
disposição do Art. antecedente aos pactos e condições em contractos matrimo-
niaes sobre a successão reciproca dos esposos”.
Sob esse olhar atento é que se deve fazer a distinção entre “herança” e “di-
reitos sucessórios” ou “direitos hereditários”. Estes são o gênero, do qual aquela
é espécie. Direitos sucessórios são todos aqueles recebidos por hereditariedade,
que decorrem da sucessão causa mortis. Da morte, como fato jurídico extintivo da
personalidade, não decorre somente a transmissão de bens e direitos do falecido
aos sucessores, mas o nascimento de vários outros direitos.
Enquanto a herança é o acervo de bens que integravam o patrimônio do
falecido e que são transmitidos por ocasião da morte, existem direitos sucessó-
rios diversos da herança, podendo-se destacar, entre outros, o usufruto vidual, o
4. GOMES DA SILVA, João. Herança e sucessão por morte. Lisboa: Universidade católica Editora, 2002,
p. 86-87.
5. GOMES DA SILVA, João. Herança e sucessão por morte. Lisboa: Universidade católica Editora, 2002,
p. 87.
6. Cf. BEVILÁQUA, Clóvis. Direito das successões. 2. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1932, p. 18.
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