Capítulo 3 - Impossibilidade de alteração do rol de herdeiros necessários do art. 1.845 do CCB por atividade hermenêutica

Páginas53-80
Capítulo 3
IMPOSSIBILIDADE DE ALTERAÇÃO
DO ROL DE HERDEIROS NECESSÁRIOS
DO ART. 1.845 DO CCB POR
ATIVIDADE HERMENÊUTICA
Sumário: 3.1 Considerações iniciais sobre a sucessão legitimária ou necessária – 3.2
Os fundamentos da legítima e o estado atual da arte – 3.3 A ampliação do rol de
herdeiros necessários com o ingresso do cônjuge sobrevivente – 3.4 A (inconstitu-
cional) pretensão de se estender a designação legitimária ao companheiro sobre-
vivente; 3.4.1 Ainda subsistem as distinções entre casamento e união estável; 3.4.2
Interpretando as decisões da Suprema Corte brasileira no que tange à extensão de
regras da sucessão do cônjuge à sucessão do companheiro; 3.4.3 O companheiro
não é herdeiro necessário de acordo com o direito sucessório brasileiro – 3.5 A união
estável após o julgamento dos embargos de declaração ao recurso extraordinário
878.694/MG – 3.6 A sucessão na união estável e o obiter dictum – 3.7 Notas conclu-
sivas ao capítulo terceiro.
3.1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE A SUCESSÃO LEGITIMÁRIA OU
NECESSÁRIA
Observa com muita propriedade Oliveira Ascensão que não obstante a
função do Direito das Sucessões seja a de servir à continuidade através das gera-
ções, frequentemente a sucessão se traduz em ruptura, fazendo eclodir dramas
familiares decorrentes de disputas patrimoniais.1 Essa realidade de ruptura
torna-se especialmente dramática quando as regras legais cogentes se encon-
tram dissociadas dos anseios sociais, afastando-se de uma expectativa geral que
1. À volta da herança suscitam-se dramas familiares; assiste-se à dissolução precoce da coesão da família
de sangue; e criam-se bloqueios no próprio uir das relações patrimoniais”. ASCENSÃO, José Oliveira.
O herdeiro legitimário. Texto de conferência proferida em 6.XII.96 no Ciclo de Homenagem ao Dr. João
António Lopes Cardoso, promovida pela Ordem dos Advogados do Porto. Disponível em: https://
portal.oa.pt/upl/%7B9010dcad-dac4-472e-81e6-a36e1435dbc5%7D.pdf. Acesso em: 07 dez. 2017).
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O DIREITO FUNDAMENTAL DE HERANÇA • Mário Luiz DeLgaDo
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concilie a vontade presumida do autor da herança com os interesses e aspirações
dos herdeiros.2
No Brasil isso ocorre principalmente em relação à chamada sucessão
necessária, adotando-se, aqui, a divisão tripartite dos títulos sucessórios, vale
dizer, sucessão legítima, sucessão testamentária e sucessão necessária, forçosa
ou legitimaria.3
Não se confundem os títulos da sucessão. Na testamentária, o herdeiro (ou
legatário) é chamado a suceder pela exclusiva vontade do autor da herança. Na
sucessão legítima, o herdeiro é chamado a suceder segundo a ordem de vocação
prevista na lei, recolhendo o que lhe couber, tomando por base o patrimônio que
existir ao tempo do óbito. Na sucessão legitimária, o herdeiro necessário tem
direito à “legítima” e esta é calculada, não apenas com base no valor dos bens
existentes à data de abertura da sucessão, mas também sobre o dos bens doados
e sujeitos à colação.4 Em outras palavras, o objeto da sucessão legitimária não
coincide, necessariamente, com o objeto da sucessão legítima.5
2. Para Ascensão, “a lei não se mostra adequada para atalhar a este estado de coisas; talvez não esteja sequer
interessada em fazê-lo. As soluções mais simples não são facilitadas. Tudo para gáudio da burocracia”
(Idem).
3. A doutrina portuguesa costuma aludir a duas modalidades de sucessão (ou de vocação) subdividi-
das em quatro subtipos. A sucessão legal, subdividida em sucessão legítima e sucessão legitimária,
e a sucessão voluntária, subdividida em sucessão testamentária e sucessão contratual, esta última
prevista no art. 2.028 do CC Português, quando alguém, por contrato, renuncia a herança de pessoa
viva. Essa divisão é questionada por Oliveira Ascensão: “A sucessão legitimaria será verdadeiramente
uma gura autónoma? Não será uma mera excepção à sucessão testamentária? Ou quiçá um aspecto
da sucessão legítima?” (Ibidem). Paulo Luiz Neto Lôbo também considera a sucessão necessária
abrangida pela sucessão legítima: “Entre os herdeiros legítimos há os que o direito tutela de modo
especial, garantindo-lhes uma parte intangível da herança, denominada legítima. São os herdeiros
necessários. A sucessão legítima necessária, também denominada sucessão legitimária, provém
da concepção primitiva e antiga, de ter o patrimônio de car, principalmente, no círculo estreito
da comunidade doméstica. (...) A nalidade da qualicação legal dos herdeiros necessários, entre
os herdeiros legítimos, diz respeito à proteção da parte da herança que não pode ser destinada a
outros parentes ou estranhos, mediante atos de liberalidade (doação, testamento, partilha em vida),
denominada legítima ou parte disponível” (LÔBO, Paulo Luiz Netto. Direito civil: sucessões. São
Paulo: Saraiva, 2013. p. 74).
4. CCB/2002: Art. 1.847. Calcula-se a legítima sobre o valor dos bens existentes na abertura da sucessão,
abatidas as dívidas e as despesas do funeral, adicionando-se, em seguida, o valor dos bens sujeitos a
colação.
5. A distinção entre herdeiro necessário e herdeiro legítimo é muito bem descrita por Oliveira Ascensão:
“Não só o estatuto legal que lhe corresponde é distinto, como há uma diferença fundamental: o objeto
da sucessão que lhe cabe é diverso do da sucessão legítima. O herdeiro legítimo é chamado à herança.
Portanto, ao património deixado pelo falecido. O herdeiro legitimário tem direito à legítima. Esta,
nos termos do art. 2162 (do Código português), é calculada, não só sobre o valor do relictum, como
sobre o dos bens doados e o das despesas sujeitas à colação” (ASCENSÃO, José Oliveira. O herdeiro
legitimário cit.).
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