O conceito de estabelecimento empresarial virtual e a proteção do consumidor nos contratos eletrônicos: algumas reflexões

AutorAntonia Espíndola Longoni Klee
Páginas341-374
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O CONCEITO DE ESTABELECIMENTO
EMPRESARIAL VIRTUAL E A PROTEÇÃO
DO CONSUMIDOR NOS CONTRATOS
ELETRÔNICOS: ALGUMAS REFLEXÕES
Antonia Espíndola Longoni Klee
Sumário: 1 Introdução. 2 O contrato eletrônico de consumo. 3 A necessidade de se adaptar
o conceito de estabelecimento empresarial para a proteção do consumidor na internet. 3.1 A
teoria do estabelecimento empresarial. 3.2 O estabelecimento empresarial virtual e o direito
de arrependimento do consumidor. 4 Conclusão. Referências.
1. INTRODUÇÃO
A globalização e o comércio internacional decorrentes do desenvolvimento cultural,
social e econômico da humanidade suscitam preocupações.1 Um dos desdobramentos
mais emblemáticos da globalização é a criação da internet,2 fenômeno que une a co-
munidade global em um mundo virtual, por meio da comunicação facilitada pela rede
1. JAYME, Erik. O direito internacional privado do novo milênio: a proteção da pessoa humana face à globalização.
Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Direito PPGDir/UFRGS, Porto Alegre, v. 1, no 1, p. 85, mar. 2003.
2. Lorenzetti ensina que “a internet é ‘uma rede internacional de computadores interconectados, que permite que se
comuniquem entre si dezenas de milhões de pessoas, bem como o acesso a uma imensa quantidade de informações
de todo o mundo’. Pode-se observar algumas características juridicamente relevantes: é uma rede aberta, posto que
qualquer um pode acessá-la; é interativa, já que o usuário gera dados, navega e estabelece relações; é internacional,
no sentido de que permite transcender as barreiras nacionais; existe uma multiplicidade de operadores; tem uma
conf‌iguração de sistema autorreferente, que não tem um centro que possa ser denominado ‘autoridade’, opera
descentralizadamente e constrói a ordem a partir das regras do caos; tem aptidão para gerar suas próprias regras
com base no costume; apresenta uma aceleração do tempo histórico; permite a comunicação em ‘tempo real’ e
uma ‘desterritorialização’ das relações jurídicas; diminui drasticamente os custos das transações” (LORENZET-
TI, Ricardo Luis. Comércio eletrônico. Tradução de Fabiano Menke. Notas de Claudia Lima Marques. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2004. p. 24-26). Af‌irma-se que o termo Internet foi utilizado pela primeira vez em 1974.
MERCOSUL.COM (Org.). B2B: uma alternativa para a expansão de seus negócios na Internet. São Paulo: Cia.
Latino-Americana de Negócios On-Line, 2000. p. 6. A internet também pode ser assim def‌inida: “rede internacional
de computadores interconectados, que permite a seus usuários um intercâmbio célere e dinâmico de conteúdos”
MOTTA, Fernando Previdi; GUELMANN, Karine Rose; CASTILHO, William Moreira. Ref‌lexões sobre o direito
do consumidor e a Internet. In: CAPAVERDE, Aldaci do Carmo; CONRADO, Marcelo (Org.). Repensando o direito
do consumidor: 15 anos do CDC: 1990-2005. Curitiba: Ordem dos Advogados do Brasil, Seção do Paraná, 2005. p.
242. Martins af‌irma que a internet é uma das facetas mais emblemáticas da globalização. MARTINS, Guilherme
Magalhães. Formação dos contratos eletrônicos de consumo via Internet. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2010. p. 3.
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internacional, que extinguiu o espaço, conforme declarou Jayme,3 e representou uma
verdadeira ruptura com o passado.4 Essa comunicação facilitada pela internet determina
uma maior vulnerabilidade daqueles que se comunicam.5 Entre eles, encontram-se os
consumidores, que se relacionam com fornecedores de produtos e serviços,6 celebran-
do contratos, vinculando-se pela internet, que é um novo ambiente de relacionamento
interpessoal.
A internet originou-se num sistema de interligação de redes de computadores nos
Estados Unidos da América, no período da Guerra Fria, durante a década de 1960, para
f‌ins de proteção militar e industrial.7 A rede mundial de computadores tinha e tem como
característica a garantia do acesso ágil às informações, não possuindo um centro único
de emissão e recepção de dados. Surgiu da necessidade de distribuição de informações
de forma descentralizada. Em tempo de guerra, isso era especialmente importante,
devido à possibilidade de ocorrer qualquer ataque que destruísse o centro de comando
das operações militares. Com a internet, os dados podiam continuar a ser transmitidos,
independentemente de pontos de comunicação específ‌icos que porventura viessem a
ser destruídos. Posteriormente, a rede de interligação de computadores passou a ser
3. JAYME, Erik. O direito internacional privado do novo milênio: a proteção da pessoa humana face à globalização.
Cadernos do Programa de Pós-Graduação em Direito PPGDir/UFRGS, Porto Alegre, v. 1, no 1, p. 86, mar. 2003.
Nesse texto, o autor ressalta a característica de ubiquidade inerente ao comércio eletrônico. O texto também foi
publicado em JAYME, Erik. O direito internacional privado no novo milênio: a proteção da pessoa humana face
à globalização. In: MARQUES, Claudia Lima; ARAUJO, Nadia (Org.). O novo direito internacional: estudos em
homenagem a Erik Jayme. Rio de Janeiro: Renovar, 2005. p. 3-20.
4. WALD, Arnoldo. A evolução do contrato no terceiro milênio e o novo Código Civil. In: ALVIM NETO, José Manuel
de Arruda; CÉSAR, Joaquim Portes Cerqueira; ROSAS, Roberto (Coord.). Aspectos controvertidos do novo Código
Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003. p. 61.
5. MARQUES, Claudia Lima. Conf‌iança no comércio eletrônico e a proteção do consumidor: um estudo dos negócios
jurídicos de consumo no comércio eletrônico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 72.
6. O conceito de fornecedor está no art. 3o do CDC. Claudia Marques Lima discorre sobre o conceito de fornecedor
em Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 5. ed. rev., atual. e ampl.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 393-426. Veja também: PASQUALOTTO, Adalberto de Souza. Conceitos
fundamentais do Código de Defesa do Consumidor, RT, São Paulo: Revista dos Tribunais, v. 80, n. 666, p. 52, abr.
1991. Para os comentários ao art. 3o do CDC, veja: NUNES, Luiz Antônio Rizzatto. Comentários ao Código de Defesa
do Consumidor. 3. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 108-124. Da mesma forma, veja FILOMENO, José
Geraldo Brito. Disposições gerais. In: GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor:
comentado pelos autores do anteprojeto. 9. ed. rev., atual. e ampl. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007. p.
46-50. Bessa expõe o conceito de fornecedor equiparado, ao lado do conceito genérico de fornecedor trazido pelo
art. 3o do CDC. Explica o autor que o Código de Defesa do Consumidor indica e detalha, em outras passagens que
não no art. 3o, atividades desenvolvidas por fornecedores de produtos e serviços que estão sujeitas à lei. Por isso,
a def‌inição de fornecedor equiparado leva em consideração a preponderância da atividade do fornecedor e não da
conf‌iguração de um fornecedor com todos os requisitos exigidos pelo caput do art. 3o. BESSA, Leonardo Roscoe.
Aplicação do Código de Defesa do Consumidor: análise crítica da relação de consumo. Brasília: Brasília Jurídica,
2007. p. 84-87.
7. Martins af‌irma que a origem da internet “remonta aos anos 60, durante a Guerra Fria, quando o governo nor-
te-americano deu vida ao projeto Arpanet (precursor da internet, criado pela Arpa – Advanced Research Projects
Agency – Agência de Projetos de Pesquisa Avançada), no sentido de uma ligação entre computadores militares e
industriais, em 1969, por intermédio da rede telefônica, de modo a prevenir um possível ataque nuclear, inexistindo,
em razão de tal preocupação, um centro de controle único a ser destruído” (MARTINS, Guilherme Magalhães.
Formação dos contratos eletrônicos de consumo via Internet. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
p. 33). Da mesma forma, af‌irma-se que a criação da internet ocorreu na década de 1960, nos Estados Unidos da
América, entretanto, foi reconhecida como um fenômeno global apenas na década de 1990, com a criação de World
Wide Web, ou, simplesmente, www, cuja ideia básica foi criada por Tim Berners-Lee em 1989. MERCOSUL.COM
(Org.). B2B: uma alternativa para a expansão de seus negócios na Internet. São Paulo: Cia. Latino-Americana de
Negócios On-Line, 2000. p. 5 e 7.
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ESTABELECIMENTO EMPRESARIAL VIRTUAL E A PROTEÇÃO DO CONSUMIDOR NOS CONTRATOS ELETRÔNICOS
utilizada nas universidades e nos laboratórios de pesquisas norte-americanos. Em um
terceiro momento, disseminou-se ao redor do mundo. Assim, uma grande quantidade de
informação passou a estar disponível às pessoas e às instituições que tinham acesso à rede.
A internet é uma rede mundial de computadores operada por pessoas que interagem
e se comunicam trocando entre si, em tempo real, mensagens, arquivos de textos, de dados
e de imagens, de som e de voz. Uma vez utilizada pelas empresas, a internet possibilitou a
negociação sem fronteiras, tanto na relação entre empresas (business to businessB2B),8
quanto na relação entre empresas e consumidores (business to consumer B2C).9
Na esfera jurídica, a preocupação consiste em verif‌icar como serão resolvidos os
problemas existentes no mundo real, quando transpostos para o mundo virtual, bus-
cando inspiração nos princípios consagrados pela Constituição da República de 1988
e aplicando os preceitos dispostos no Código de Proteção e Defesa do Consumidor, em
conjunto com as disposições do Código Civil de 2002, objetivando sempre a melhor e
mais ef‌icaz proteção do consumidor, evitando-se o seu retrocesso, no âmbito do direito
interno e internacional.
Para a análise da proteção do consumidor no ambiente virtual, faz-se necessário
def‌inir alguns conceitos, tais como contrato de adesão, estabelecimento empresarial
virtual e ausência no momento da celebração do contrato, com o objetivo de determinar
a legislação aplicável para a proteção dos direitos dos consumidores. Do ponto de vista
do direito empresarial, a concepção de estabelecimento empresarial preocupa juristas e
já foi objeto de estudos anteriores.10
Mais do que uma efetiva alteração na sistemática das relações, a internet impõe uma
necessidade de transposição e de adaptação de conceitos e, no que couber, de adequação da
legislação já existente,11 a ser complementada pela regulamentação específ‌ica dos aspectos
8. O B2B também é conhecido como e-biz, def‌inido como “o intercâmbio de produtos, serviços ou informação entre
empresas, mais do que entre empresas e consumidores” (MERCOSUL.COM (Org.). B2B: uma alternativa para a
expansão de seus negócios na Internet. São Paulo: Cia. Latino-Americana de Negócios On-Line, 2000. p. 34).
9. Ballarino refere que, além dos contratos B2B e dos B2C, há os P2P (peer to peer), que “são aqueles concluídos entre
sujeitos de mesmo ‘grau’, conhecidos principalmente pelas trocas de arquivos musicais segundo as modalidades
da Napster” (BALLARINO, Tito. A Internet e a conclusão dos contratos. In: POSENATO, Naiara (Org.). Contratos
internacionais: tendências e perspectivas: estudos de direito internacional privado e direito comparado. Ijuí: Unijuí,
2006. p. 203).
10. Veja: LIPPERT, Márcia Mallmann. A empresa no Código Civil: elemento de unif‌icação no direito privado. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2003. p. 147-152.
11. Santolim sustenta que a proteção do consumidor no comércio eletrônico pode se dar pela aplicação dos princípios
já consagrados nessa esfera, quais sejam, a boa-fé objetiva, a transparência, a conf‌iança, a probidade, a vulnerabi-
lidade, a solidariedade obrigacional e a autonomia privada. SANTOLIM, Cesar Viterbo Matos. Os princípios de
proteção do consumidor e o comércio eletrônico no direito brasileiro. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo,
v. 14, no 55, p. 55, jul./set. 2005. Pode-se af‌irmar que Santolim foi inspirado por Couto e Silva, emérito professor
da Faculdade de Direito da UFRGS, que ponderou: “Certamente, o mundo jurídico tem lacunas, mas isso signif‌ica
que ele está em constante evolução, dinamizando, em contato com as necessidades sociais, os seus princípios, de
modo que abranjam situações não previstas anteriormente” (COUTO E SILVA, Clovis Verissimo do. A obrigação
como processo. São Paulo: J. Bushatsky, 1976. p. 113). Junqueira assevera que aos contratos eletrônicos também
são aplicáveis os princípios da obrigatoriedade, da autonomia da vontade, do consensualismo e da boa-fé. JUN-
QUEIRA, Miriam. Contratos eletrônicos. Rio de Janeiro: Mauad, 1997. p. 111. Seguindo os passos de Santolim e
Junqueira, Elias af‌irma que aos contratos celebrados pela internet são aplicáveis, além dos princípios já referidos,
o da leal cooperação e o da informação. ELIAS, Paulo Sá. Contratos eletrônicos e a formação do vínculo. São Paulo:
Lex, 2008. p. 70.
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