Informação e consumo: a proteção da privacidade do consumidor no mercado contemporâneo da oferta

AutorFernanda Nunes Barbosa
Páginas471-494
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INFORMAÇÃO E CONSUMO:
A PROTEÇÃO DA PRIVACIDADE
DO CONSUMIDOR NO MERCADO
CONTEMPORÂNEO DA OFERTA
Fernanda Nunes Barbosa
Sumário: 1 Introdução. 2 Privacidade e mercado. 3 Exame do REsp nº 844.736/DF e o con-
ceito de dano moral. 4 O direito do consumidor à não informação em seu duplo aspecto: da
venda de cadastro e banco de dados de consumidores à publicidade agressiva. 5 Proposta de
atualização do CDC: novos tempos para a privacidade do consumidor. 6 A gura do “assédio
de consumo”. 7 Algumas conclusões. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Como garantia dos consumidores, o direito à informação1 advém, por um lado, do
reconhecimento do valor da livre e racional manifestação da vontade,2 que se concretiza
no direito de escolha. Por outro- e talvez menos óbvio a uma primeira vista -, provém da
proteção contra a propagação de informações de interesse exclusivo do consumidor - a
exemplo do chamado segredo prof‌issional - ou mesmo de qualquer outra mensagem que
venha a ferir o direito à privacidade3 da pessoa, seja quanto ao seu conteúdo, a exemplo
da divulgação, venda ou permuta de cadastros e bancos de dados (conjunto de infor-
mações organizadas obedecendo a uma determinada lógica), seja quanto à sua forma,
considerando a agressividade com que algumas informações (publicitárias) são impostas
ao consumidor por meio de técnicas ilegítimas de marketing. Nessa lógica, a informação
é abordada sob um viés negativo, da não-informação.
1. Nas palavras de Fabíola Santos ALBUQUERQUE: “A informação é dotada de um colorido coletivo, a ausência de
informação na relação de consumo não atinge apenas aquele consumidor específ‌ico que está em vias de celebrar um
contrato, mas a toda a coletividade de forma indistinta. Tanto que a lei ao dispor sobre o conceito de consumidor
não f‌icou adstrita ao de consumidor f‌inal, ampliou as hipóteses de incidência (arts. 2.º, caput e parágrafo único,
17 e 29 CDC)”. O Dever de Informar nas Relações de Consumo. Revista Trimestral de Direito Civil, v. 5, p. 83-100,
2001, p. 85. (g.n.).
2. Veja: MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contra-
tuais. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 182.
3. Privacidade essa já proclamada em 1890 por Warren e Brandeis, quando em seu artigo The right to privacy de-
fendiam “a general right to privacy”, isto é, “a principle from which may be invoked to protect the privacy of the
individual from invasion either by the too enterprising press, the photographer scenes or sounds” (g.n.) Samuel
WARREN; Louis BRANDIES. The right to privacy. Harvard Law Review, vol. IV, dez. 1890, nº 5.
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FERNANDA NUNES BARBOSA
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No primeiro aspecto, o direito do consumidor à informação e o consequente dever
do fornecedor de prestá-la encontra origem nos fundamentos constitucionais do direi-
to à informação dos cidadãos (inciso XIV) e na defesa do consumidor (inciso XXXII)
como garantias fundamentais e cláusulas pétreas do art. 5º da CF/88. Com efeito, sob o
aspecto constitucional é possível dizer que a proteção do consumidor relativamente à
informação encontra guarida no pleno exercício da cidadania, pois, na sociedade con-
temporânea, massif‌icada e globalizada,4 somente um indivíduo bem informado é capaz
de exercer os diversos papéis que lhe são reservados na convivência social, dentre os
quais o de consumidor.
A constatação de que o direito à informação não estaria contido apenas em legisla-
ções infraconstitucionais, mas também nas Constituições mais recentes, como direito
fundamental, denota que seus efeitos não se restringem à ordem privada dos sujeitos, mas
irradiam-se na consideração pública do campo indisponível da cidadania ativa, segundo
a concepção contemporânea que não a vê somente no exercício do direito oponível ao
Estado, mas em face do poder econômico.5 José Geraldo Brito Filomeno, ao tratar do
consumidor “cidadão” (sob o enfoque político), assim leciona: “A ‘cidadania’ não signif‌ica
apenas, consoante sua raiz latina, a qualidade daquele que detém ‘direitos políticos’, mas
de quem participa das decisões procurando transformar uma realidade”.6 Sustenta, com
base nessa af‌irmação, o despropósito do veto presidencial ao inc. IX do art. 6.º do CDC,
o qual propugnava ser direito básico dos consumidores “a participação e consulta na
formulação das políticas que os afetam diretamente, e a representação de seus interesses
por intermédio das entidades públicas ou privadas de defesa do consumidor”.7
4. Em análise da globalização na pós-modernidade como fenômeno ideológico, social e econômico, ver: Ghersi,
Carlos Alberto. Globalización y derecho de daños: los derechos constitucionales incumplidos. Revista de Direito do
Consumidor. São Paulo: RT, nº 47, p. 9-18, jul.-set. 2003. Importantes considerações também são feitas por JAYME,
Erik. O direito internacional privado no novo milênio: a proteção da pessoa humana face à globalização. Cadernos
do Programa de Pós-Graduação em Direito – PPGDir./UFRGS. Porto Alegre, v. 1, nº 1, p. 86, mar. 2003. Em palavras
do autor: “Em verdade, a globalização é caracterizada pelo fato de os Estados não serem mais os centros do poder
e da proteção da pessoa humana. Os Estados estão cedendo grande parte de seus poderes aos mercados. As regras
da concorrência determinam a vida e o comportamento dos seres humanos. A existência de um mercado global
permite fusões de grandes empresas, resultando em um poder econômico gigantesco, que deixa aberta a questão
da proteção do indivíduo que gostaria de manter seu posto de trabalho, proteção tradicionalmente fornecida pelo
Estado. Para preencher este vazio legal, os juristas reclamam a criação de um sistema mundial de proteção contra
as práticas anticoncorrência”. Este poder que hoje se encontra “nas mãos” do mercado acarreta ref‌lexos bastante
negativos, como bem aponta Michael J. SANDEL, ao abordar os seus limites morais e criticar a transposição atual
de nossa sociedade, que de uma economia de mercado transmuta-se para uma verdadeira sociedade de mercado. Há,
nesse sentido, uma “tendência corrosiva dos mercados”, que acaba por “corromper o signif‌icado da cidadania”.
SANDEL, Michael J. O que o dinheiro não compra: os limites morais do mercado. Trad. Clóvis Marques. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2012, esp. pp. 14-15.
5. LÔBO, Paulo Luiz Neto. A informação como direito fundamental do consumidor. Disponível em: < http://www1.jus.
com.br/doutrina/texto >. Acesso em: 10 jan. 2020, p. 1.
6. FILOMENO, José Geraldo Brito. Consumidor e cidadania: agente político e econômico. Revista de Direito do
Consumidor. São Paulo: RT, ano 10, n. 40, p. 261-265, out.-dez. 2001, p. 263.
7. O veto assim se justif‌icava: “O dispositivo contraria o princípio da democracia representativa ao assegurar, de forma
ampla, o direito de participação na formulação das políticas que afetam diretamente o consumidor. O exercício do
poder pelo voto faz-se por intermédio de representantes legitimamente eleitos, excetuadas as situações previstas
expressamente na Constituição (CF, art. 61, § 2.º)”. (FILOMENO, José Geraldo Brito. Consumidor e cidadania:
agente político e econômico, cit., p. 263.)
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