Contratos eletrônicos de consumo: aspectos doutrinário, legislativo e jurisprudencial

AutorPedro Modenesi
Páginas559-618
25
CONTRATOS ELETRÔNICOS DE CONSUMO:
ASPECTOS DOUTRINÁRIO, LEGISLATIVO E
JURISPRUDENCIAL1
Pedro Modenesi
Sumário: 1 Introdução. 2 Comércio eletrônico de consumo: a revolução da Internet. 3 Contra-
tação eletrônica: “clique para contratar!”. 4 Formação do contrato eletrônico: consentimento
tecnológico. 5 Complexidade da contratação eletrônica. 6 A acentuada vulnerabilidade do
ciberconsumidor. 7 Principais falhas do mercado eletrônico. 8 Da necessidade de regula-
ção legal do comércio eletrônico. 9 Aplicação da boa-fé objetiva ao mercado eletrônico.
10 Projeto de Lei do Senado 281, de 2012 (atual Projeto de Lei 3514, de 2015, da Câmara dos
Deputados): proposta de atualização do CDC. 11 A regulamentação do CDC pelo Decreto do
Executivo 7.962/13. 12 Resolução on-line de conitos no comércio eletrônico de consumo.
13 Conclusão. Referências.
1. INTRODUÇÃO
O comércio eletrônico de consumo já é um fenômeno bem consolidado no país,
devendo-se dizer que é, antes de tudo, uma realidade global. No mercado nacional,
especif‌icamente, esse comércio, que vem apresentando crescimento constante desde
2001, registrou no primeiro semestre de 2020 recorde de faturamento em vinte anos
de e-commerce impulsionado pela pandemia do coronavírus (Covid-19), cuja alta de
47% frente ao primeiro semestre de 2019 resultou em um total de mais de trinta e oito
bilhões de reais em vendas. Ainda no primeiro semestre de 2020, foram identif‌icados
sete milhões de novos ciberconsumidores, o que representa um crescimento de 40%
frente ao primeiro semestre de 2019, totalizando quarenta e um milhões de cibercon-
sumidores no país.2- 3 Todavia, a despeito de já ter alcançado uma dimensão econômica
tão signif‌icativa, com clara tendência de se intensif‌icar nos próximos anos, o comércio
1. Este trabalho é fruto de pesquisa iniciada no Programa mestrado de Pós-Graduação em Direito da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro, que resultou primeiramente na seguinte publicação: MODENESI, Pedro. Comércio
eletrônico e tutela do ciberconsumidor. Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, v. 48, out./dez. 2011. A
Rui Lyrio Modenesi, agradeço pela revisão do texto deste trabalho e, principalmente, por ter despertado em mim
a paixão por ler e escrever.
2. Já nos Estados Unidos, as vendas on-line aumentaram de US$ 155,5 bilhões, em 2009, para US$ 172,9 bilhões,
em 2010. Conforme: Consumidores podem comparar preços de lojas com ofertas da Amazon. Valor Econômico,
Rio de Janeiro, 23 nov. 2010, p. B2.
3. Conf‌iram-se os relatórios semestrais denominados WebShoppers da e-bit, empresa que monitora os dados e a
evolução do mercado eletrônico de consumo nacional, disponíveis em: .ebit.com.br/webshoppers>.
Acesso em: 14 jan. 2020.
EBOOK DIREITO DIGITAL 4ED.indb 559EBOOK DIREITO DIGITAL 4ED.indb 559 31/03/2021 16:10:2731/03/2021 16:10:27
PEDRO MODENESI
560
via Internet ainda suscita muitos desaf‌ios e questionamentos, principalmente no que
diz respeito à proteção do ciberconsumidor.
O presente trabalho trata, primeiramente, do comércio eletrônico e de seu ins-
trumento básico, a Internet, sublinhando os mais relevantes aspectos da contratação
eletrônica de consumo, que é realizada, majoritariamente, por intermédio dos chamados
“contratos por clique”. Também é objeto de análise a complexidade da contratação virtual,
ilustrando-se mediante casos concretos e decisões judiciais os problemas e falhas mais
usualmente verif‌icados no mercado eletrônico, os quais dão ensejo a uma acentuada
vulnerabilidade do ciberconsumidor.
Outro tema abordado é a necessidade de regulação legal específ‌ica para o comércio
eletrônico, a qual, em razão da acelerada dinâmica tecnológica dessa atividade, deverá
envolver a consideração dos princípios jurídicos – elementos essenciais à f‌lexibilidade
do sistema normativo –, enfatizando-se a especial aptidão da boa-fé objetiva como meio
de assegurar a tutela dos direitos da parte mais fraca da relação contratual. Assim, é cri-
ticamente analisado o Projeto de Lei do Senado no 281 de 2012 (PLS no 281/12), que deu
origem ao Projeto de Lei no 3514, de 2015, na Câmara dos Deputados (PL no 3514/15),
e objetiva atualizar a normativa do Código de Defesa do Consumidor (CDC), frente às
peculiaridades da contratação eletrônica de consumo, de modo a fortalecer a proteção e
a conf‌iança do consumidor nas transações virtuais. Bem assim, é examinado o Decreto
do Executivo no 7.962 de 2013, que regulamenta o CDC quanto a alguns aspectos da
contração on-line.
Apresenta-se, ainda, o gênero resolução online de conf‌litos – em inglês online dispute
resolution (ODR) –, em que há a transposição dos mecanismos tradicionais de solução
extrajudicial de litígios para o ambiente virtual, destacando-se o especial papel da
mediação e da arbitragem on-line para a composição das controvérsias decorrentes da
contratação eletrônica de consumo. Por f‌im, é assinalada a possibilidade de instituição
de um tribunal judicial eletrônico, no qual o processo assumiria a forma on-line e o con-
tencioso seria realizado virtualmente, sem a necessária presença física dos litigantes ou
de seus representantes legais.
2. COMÉRCIO ELETRÔNICO DE CONSUMO: A REVOLUÇÃO DA INTERNET
“We live in both an information age and an age of globalization”.4 Essa af‌irmação de Iain
Ramsay ilustra bem o momento atual vivido pela sociedade contemporânea. Trata-se do que,
sociologicamente, se denomina um período de ruptura ou de transição paradigmática: supera-se
o paradigma da sociedade industrial e consolida-se o da sociedade da informação (ou sociedade
digital). A revolução da tecnologia digital vem provocando profundas transformações no plano
das relações econômicas e sociais, que repercutem, necessariamente, na esfera jurídica, uma vez
4. RAMSAY, Iain. Consumer protection in the era of informational capitalism. In: WILHELMSSON, Thomas; TUO-
MINEM, Salla; and TUOMOLA, Heli (Ed.). Consumer law in the information society. The Hague: Kluwer Law
International, 2001. p. 45.
EBOOK DIREITO DIGITAL 4ED.indb 560EBOOK DIREITO DIGITAL 4ED.indb 560 31/03/2021 16:10:2831/03/2021 16:10:28
561
CONTRATOS ELETRÔNICOS DE CONSUMO: ASPECTOS DOUTRINÁRIO, LEGISLATIVO E JURISPRUDENCIAL
que o Direito, sendo dotado de socialidade, “é um fenômeno histórico-social sempre sujeito a
variações e intercorrências, f‌luxos e ref‌luxos no espaço e no tempo”.5
Símbolo maior dessa revolução, a Internet é def‌inida por Guilherme Magalhães
Martins como
[u]ma rede de computadores ligados entre si, perfazendo-se a conexão e comunicação por meio de
um conjunto de protocolos, denominados TCP/IP (Transmission Control Protocol/Internet Protocol),6
de maneira que a identicação das suas fronteiras físicas se torna impossível, em virtude da sua difusão
pelo planeta, atravessando várias nações como se fora um rio, tendo englobado milhares de outras redes
ao redor do mundo, que passaram a adotar tais protocolos.7
Dessa forma, a Internet revela-se um revolucionário veículo de comunicação, que
constitui elemento fundamental do paradigma da emergente sociedade digital, destacan-
do-se, sobretudo, como uma nova plataforma para a realização de transações comerciais,
uma relevante ferramenta para a difusão do conhecimento e, igualmente, um ambiente
(virtual) para o lazer e a diversão.8 A World Wide Web9 (que se pode traduzir como rede
de alcance mundial), também conhecida como Web ou WWW, é o sistema que confere
o caráter prático da Internet, pois é por meio dela que se torna possível a navegação ou
a utilização do principal ambiente do ciberespaço,10 que é a Internet.
Esse novo canal de comunicação reúne alguns atributos, dentre os quais sobressai
o fato de ser uma rede aberta e interativa: basta o necessário aparato tecnológico para
que o usuário possa trocar informações, nos mais variados formatos, com todos aqueles
que também tenham acesso à rede. Outra fundamental propriedade é a sua capacidade
de disponibilização – em escala planetária e com uma velocidade antes inimaginável –
de dados e informações em um inusitado volume, que no passado era, simplesmente,
impossível de ser processado. Ressalte-se, ainda, seu forte caráter internacional, que
provoca um abrandamento da relevância das fronteiras geográf‌icas entre os países, com
uma aparente diminuição das distâncias físicas.11
5. Sobre o caráter historicamente condicionado do Direito e, pois, a necessidade de evoluir em consonância com a
realidade política e socioeconômica, ver: REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 26. ed. São Paulo: Saraiva,
2002. p. 2 e 14. E, também: TEPEDINO, Gustavo. As relações de consumo e a nova teoria contratual. Temas de
Direito Civil, Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 199-200.
6. Ver: MARTINS, Guilherme Magalhães. Responsabilidade civil por acidentes de consumo na internet. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2008. p. 392. Segundo o glossário de termos técnicos de informática constante dessa obra,
TCP/IP (que, em inglês, signif‌ica Transmission Control Protocol/Interface Program) é a denominação de um “[p]
rotocolo de controle da transmissão/programa de interface, ou seja, um protocolo, orientado para a conexão, que
utiliza DARPA para sua investigação de operações de interconexão de redes”.
7. Cf.: MARTINS, Guilherme Magalhães. Formação dos contratos eletrônicos de consumo via internet. 2. ed. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 21.
8. CANUT, Letícia. Proteção do consumidor no comércio eletrônico. Curitiba: Juruá, 2007, p. 54.
9. De acordo com Guilherme Magalhães Martins. Formação dos contratos eletrônicos de consumo via internet. 2. ed.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 31: “[a] World Wide Web (Teia de Alcance Global) ou WWW [...] consiste
no serviço mais conhecido do grande público, muitas vezes confundido com a própria Internet”.
10. Compreende-se o ciberespaço “como o espaço criado de forma artif‌icial, informaticamente, baseado em f‌luxos de
informação (cibernéticos) em formato digital”. Cf.: CANUT, Op. cit. p. 52-54.
11. Cf.: LORENZETTI, Ricardo L. Comércio eletrônico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. p. 25-26. E também:
LORENZETTI, Ricardo L. Informática, cyberlaw, e-commerce. In: DE LUCCA, Newton; SIMÃO FILHO, Adalberto
(Coord.). Direito e internet – aspectos jurídicos relevantes. São Paulo: Edipro, 2000. p. 423. Observe-se que as
particularidades da Internet delineadas por Ricardo Lorenzetti são igualmente assinaladas nas obras de outros
EBOOK DIREITO DIGITAL 4ED.indb 561EBOOK DIREITO DIGITAL 4ED.indb 561 31/03/2021 16:10:2831/03/2021 16:10:28

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT