A infraestrutura jurídica da economia dos dados: dos princípios de justiça às leis de dados pessoais

AutorBruno Ricardo Bioni e Rafael A. F. Zanatta
Páginas393-420
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A INFRAESTRUTURA JURÍDICA DA ECONOMIA
DOS DADOS: DOS PRINCÍPIOS DE JUSTIÇA
ÀS LEIS DE DADOS PESSOAIS1
Bruno Ricardo Bioni
Rafael A. F. Zanatta
Sumário: 1 Introdução. 2 O debate estadunidense e a centralidade dos Fair Information Practices
Principles. 2.1 A transformação do direito estatutário e a construção de princípios de justiça.
2.2 Transformações regulatórias: Fair Credit Reporting Act e Privacy Act. 2.3 O fortalecimento
dos FIPPs na Federal Trade Commission. 3 Dos princípios às Leis Gerais de Proteção de Dados
Pessoais: a abordagem europeia. 3.1 A harmonização jurídica via Convenção Internacional
108 e Parlamento Europeu. 3.2 O esforço político para construção do Regulamento Geral de
Proteção de Dados Pessoais. 3.3 Transferências internacionais, o “Mercado Único Europeu”
e a corregulação. 4 Tendências jurídicas e desaos para o direito regulatório brasileiro. 4.1
Privacy by design e normatividade pela programação. 4.2 Accountability como elemento
central dos novos sistemas de proteção de dados pessoais: da GDPR à LGPD. 4.3 Avaliações
de impacto: tecnocracia ou possibilidade de participação? 5 Conclusão. Referências.
1. INTRODUÇÃO
É lugar-comum af‌irmar que “vivemos em uma economia de dados” e que estamos
passando por um processo de “transformação digital”2. Nas ciências sociais, fala-se de
“datif‌icação”3 – um processo de transformação de todos os aspectos da ação social em
dados, fazendo com que essa informação tenha valor pela capacidade de análise preditiva
–, ao passo que o Fórum Econômico Mundial, sem as mesmas pretensões acadêmicas, tem
utilizado constantemente o termo digital economy e enfatizado os potenciais da revolução
gerada pela conectividade em massa e serviços que se valem de técnicas avançadas de
1. Este ensaio foi escrito entre março e abril de 2019, antes da fundação da Associação Data Privacy Brasil de Pesquisa e
nosso trabalho em conjunto como diretores da organização. Uma versão foi publicada no livro de Ladislau Dowbor
intitulado “Sociedade Vigiada: Como a invasão da privacidade, por grandes corporações e Estados autoritários,
ameaça instalar uma nova distopia”, pela editora Autonomia Literária (2020), com o título “Direito e economia
política dos dados: um guia introdutório”. Somos gratos a Antonio Martins e Ladislau Dowbor pelo estímulo à
escrita.
2. SILVA, Nelson. Transformação digital: a 4. Revolução industrial. Boletim de Conjuntura da FGV, n. 8, p. 15-18,
2018. Para um diagnóstico anterior. cf. IANSITI, Marco; LAKHANI, Karim R. Digital ubiquity: How connections,
sensors, and data are revolutionizing business. Harvard Business Review, v. 92, n. 11, p. 19, 2014.
3. VAN DIJCK, Johana. Dataf‌ication, dataism and dataveillance: Big Data between scientif‌ic paradigm and ideology.
Surveillance & Society, v. 12, n. 2, p. 197-208, 2014.
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BRUNO RICARDO BIONI E RAFAEL A. F. ZANATTA
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análise de dados.4 Com acerto, Evgeny Morozov tem defendido a orientação dos debates
nas ciências humanas para o fenômeno do “capitalismo dadocêntrico”5.
No nível político, planos como o “Building a European Data Economy6 da União
Europeia e a “Estratégia Brasileira para a Transformação Digital”7 evidenciam interes-
ses, no nível regional e nacional, em buscar “competitividade em negócios digitais,
digitalização de serviços públicos, criação de empregos qualif‌icados na nova economia
e políticas para uma educação melhor e mais avançada”. A centralidade da “datif‌icação”
se dá, também, nas políticas industriais e nos novos planos de “inteligência artif‌icial”,
que o Brasil ainda não possui.8
A conf‌iguração dessa “economia política dos dados”9 parte de um longo processo
de transformação sociotécnica, chamado por James Beninger, em livro clássico de 1986,
de “revolução do controle”10, decorrente de uma série de inovações no campo da física,
das telecomunicações e da computação, que ampliaram a capacidade de controle da
informação.11 Recentemente, livros como Data and Goliath (2015), de Bruce Schneier, e
The Age of Surveillance Capitalism (2019), de Shoshana Zuboff, colocaram em evidência
uma especif‌icidade dessa economia após o advento de Google, Alibaba e Facebook: a
enorme capacidade de empresas de tecnologia de monetizar e extrair valor do “material
cru” composto por nossas relações sociais cotidianas, graças à ubiquidade dos smartpho-
nes, computadores e barateamento dos custos de coleta e transmissão de informações
relacionadas a nossa atuação diante de tais dispositivos e aplicações. Tornou-se evidente,
enf‌im, que a Internet é (e sempre foi) uma rede de controle12 e que a digitalização promo-
ve uma espécie de “capitalismo de vigilância”13, com uma lógica econômica específ‌ica.
4. Ver .
5. MOROZOV, Evgeny. Big Tech: a ascensão dos dados e a morte da política. São Paulo: Ubu Editora, 2018.
6. .
7. .mctic.gov.br/mctic/export/sites/institucional/estrategiadigital.pdf>.
8. LEMOS, Ronaldo. É preciso plano de inteligência artif‌icial, Folha de São Paulo, 04/02/2019 (argumentando que
inteligência artif‌icial “deve ser vista hoje como parte da infraestrutura de qualquer país, pois é capaz de gerar ex-
ternalidades positivas para todas as atividades produtivas, tornando-as mais competitivas e ef‌icientes”). O plano
pode ser encontrado aqui: .br/mctic/export/sites/institucional/estrategiadigital.pdf>.
9. ARRIETA IBARRA, Imanol et al. Should We Treat Data as Labor? Moving Beyond ‘Free’. American Economic As-
sociation Papers & Proceedings, v. 1, n. 1, 2017.
10. BENIGER, James. The control revolution: Technological and economic origins of the information society. Harvard
university press, 2009.
11. O historiador da ciência Bonît Godin demonstrou que o conceito de “information economy”, utilizado desde 1945,
passou por uma compreensão da informação como conhecimento, depois como informação como “commodity”,
informação como “atividade industrial” e informação como “tecnologia”.
12. Demi Getschko, um dos engenheiros responsáveis pela disseminação da Internet no Brasil, sempre af‌irma em suas
palestras que o conceito de cybernetics, tal como desenvolvido por Norbert Wiener (1894-1964), se relaciona ao
“estudo científ‌ico do controle e da comunicação dos animais e das máquinas”. A etimologia da palavra “cyber”
vem do grego , originária da navegação marítima, designando “governança”. Nesse sentido, é ilusório
acreditar que “cyber” signif‌ica algo como espaço etéreo, livre de normas e incontrolável. Wiener emprestou o
conceito do cientista francês André Marie Ampére, que cunhou a expressão “Cybernétique” como ciência ou arte do
governo, sendo uma subciência da “Politique”. Ampére, por sua vez, adaptou a expressão de Platão (kybernetike).
LEVIN, Mariam. Cultures of Control. Amsterdam: Harwood Academic Publisher, 2000, p. 252.
13. EVANGELISTA, Rafael. Capitalismo de Vigilância no Sul Global: por uma perspectiva situada, in: 5º Simpósio
Internacional LAVITS, Santiago, Chile, 2017, p. 243-253. Disponível em: -
ads/2018/04/08-Rafael-Evangelista.pdf>.
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