Novo paradigma tecnológico, mercado de consumo e o direito do consumidor

AutorBruno Miragem
Páginas421-458
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NOVO PARADIGMA TECNOLÓGICO,
MERCADO DE CONSUMO
E O DIREITO DO CONSUMIDOR1
Bruno Miragem
Sumário: 1 Introdução. 2 Os novos modelos de oferta e contratação. 2.1 O comércio eletrô-
nico. 2.2 O fornecimento por plataforma digital. 2.3 Contratos inteligentes (smart contracts).
3 Os novos produtos e serviços. 3.1 Bens digitais. 3.2 Internet das coisas. 3.3 Inteligência
articial. 4 Repercussão do novo paradigma tecnológico sobre os direitos do consumidor. 4.1
Aproximação das categorias de produto e serviço. 4.2 Novos riscos tecnológicos e os regimes
de responsabilidade do fornecedor. 4.3 Novos métodos de solução de conitos (Resolução
de disputas on-line). 5 Considerações nais. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Em um clássico ensaio sobre a inovação originada pelo desenvolvimento tecnológico
em meados do século XX, Elting E. Morison referiu que grande parte de sua pesquisa
e ref‌lexão concentrou-se, essencialmente, em quatro aspectos: a condição original das
coisas que sofreriam mudanças; os agentes de mudança; a natureza da resistência à mu-
dança e os meios para facilitar a acomodação com a mudança.2 Não é diferente hoje com
o aprofundamento das transformações do mercado de consumo, resultado da utilização
intensiva da tecnologia da informação para criação de novas formas de oferta e contrata-
ção, como também de novos produtos e serviços. A sociedade de consumo, em alguma
medida, incentiva as transformações tecnológicas, uma vez que favorece a concorrência
e ef‌iciência dos agentes econômicos para oferecer mais e melhores produtos e serviços,
estimulando a inovação que promova a qualidade.3 Por outro lado, será impactada por
essas mesmas transformações tecnológicas, que alteram substancialmente a forma de
se relacionar no mercado, seja na aproximação pré-negocial, na celebração dos contra-
tos, em sua execução, ou mesmo nos efeitos que perdurem do contrato ou resultem da
responsabilidade do fornecedor pelo inadimplemento de seus deveres.
O desenvolvimento da informática e das tecnologias da informação que se segui-
ram, permitiram a potencialização da economia de escala – característica da sociedade
1. Este texto foi originalmente publicado na Revista de Direito do Consumidor – RDC, vol. 125, set./out. 2019.
2. MORISON, Elting E. Men, machines and modern times. 50th anniversary edition. Cambridge: The MIT Press, 2016.
p. 9.
3. Sobre as características da sociedade de consumo e a origem do direito do consumidor, veja-se: MIRAGEM, Bruno.
Curso de direito do consumidor. 7. ed. São Paulo: Ed. RT, 2018. p. 47 e ss.
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de consumo contemporânea –, porém colocaram em destaque novos elementos, como a
def‌inição de novas utilidades, aperfeiçoamento de produtos e serviços visando a redução
de falhas ou otimização de sua ef‌iciência, assim como, em outro estágio, de novos produtos
e serviços. Nesse particular, percebe-se tanto a aplicação das tecnologias da informação
para aperfeiçoamento de produtos e serviços ofertados comumente no mercado de con-
sumo já antes de seu desenvolvimento, como outros que supõem a existência dessas
tecnologias, e só em razão delas passam a ter a possibilidade de serem desenvolvidos.
Entre os vários exemplos de avanço tecnológico, nenhum é mais relevante do que
o desenvolvimento da Internet, o qual deu causa, mesmo, ao surgimento de uma di-
mensão nova do mercado de consumo (mercado de consumo virtual) e as relações que
se estabelecem por intermédio dela, como o comércio eletrônico – integrando fenôme-
nos diversos como a oferta pela Internet e os meios de pagamento eletrônico –, novas
estruturas negociais de oferta de produtos e serviços – caso, e.g. do fornecimento por
plataforma digital – e a estratégia de reconhecimento mais preciso dos interesses dos
consumidores – em especial pelo tratamento de dados pessoais.
A utilização da Internet para f‌ins negociais data de meados da década de 1990, quan-
do se afasta de sua ênfase acadêmica, e passa a se tornar um meio de oferta de produtos
e serviços, sob diferentes modelos de custeio e remuneração. Tanto assim é que, desde
então, muitos serviços são oferecidos de modo aparentemente gratuito (caso dos sites
de busca, rede social, entre outros), porém sempre com base em ref‌inados modelos de
remuneração indireta, a partir do interesse que despertam nos consumidores, quantidade
de acessos em sites, dados que permitem coletar, ou outros elementos que se vinculem,
de diferentes formas, a um genuíno interesse negocial.
Em um curto espaço de tempo, essas transformações tecnológicas operaram profun-
das transformações no modo como consumidores adquirem ou utilizam determinados
produtos ou serviços. São exemplos notáveis os serviços bancários, em relação aos quais
um crescente contingente de consumidores serve-se da Internet para realização de ope-
rações bancárias antes realizadas em agências; a oferta e venda de um conjunto cada vez
maior de produtos, seja diretamente pelo fornecedor, seja por grandes varejistas virtuais
que apresentam como vantagem o sistema de pagamento simplif‌icado (eletrônico ou
por cartões de débito ou crédito), ou a ef‌iciência e celeridade na entrega (dispensando o
consumidor de ter de ir ao estabelecimento físico buscar o bem ou arcar com seu trans-
porte). Da mesma forma, a facilidade de encontrar o fornecedor que ofereça precisamente
o produto ou serviço de que necessita o consumidor, com informações suf‌icientes sobre
suas características, preços, comparação a outros fornecedores semelhantes, sem a ne-
cessidade de interação pessoal, com economia de tempo e uma aparência ou sensação
de melhor controle sobre a entrega/fornecimento, são vantagens comumente associadas
ao comércio pela Internet.
Em um primeiro momento, os serviços e utilidades disponíveis na Internet, bem
como seu modo de fruição realizavam-se, geralmente, em terminais de computadores e
em um sentido unidirecional, no qual o conteúdo gerado pelos provedores era recebido
pelos usuários. Será em um segundo estágio, então, que o uso da Internet se converte
em bidirecional, de modo que os usuários passam também a interagir, participando da
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formação do conteúdo exposto na rede. Essa transformação trouxe consigo a possibilida-
de de participação mais ativa dos usuários na internet, o que foi facilitado também pelo
desenvolvimento de aparelhos telefônicos multifuncionais (smartphones), permitindo
o crescente acesso à internet por dispositivos móveis, a qualquer hora, aumentando
exponencialmente as f‌inalidades e o tempo médio de sua utilização. Da mesma forma, a
crescente capacidade de processamento de dados resultantes da navegação pela internet,
ou aqueles associados ao usuário, passa a permitir um ref‌inamento e maior precisão da
oferta de informações pela rede, otimizando tempo e buscando antecipar seu interesse,
aumentando a probabilidade de direcioná-las, com êxito, às opções mais adequadas a
seus objetivos.
Outro elemento característico do consumo realizado pela internet será a facilidade,
simplicidade e agilidade na celebração dos contratos de consumo. Por vezes, mediante
simples aceitação (one click contracts), conf‌iança em relação à exatidão do objeto con-
tratado e seu cumprimento, e maior segurança no meio de pagamento (pagamento por
cartões ou transferência de fundos, via bancária, ou arranjos de pagamento).
Será nesse mercado de consumo “virtual” ou “digital” que passam a se organizar,
então, novos modos de oferta de produtos e serviços, por intermédio de estruturas de
maior complexidade, com a participação de diferentes agentes, especialmente dentre
os fornecedores dos serviços. Assim, por exemplo, o que passa a ocorrer com a denomi-
nada economia do compartilhamento, no qual o fornecimento dos serviços através de
uma plataforma digital permitirá aproximar consumidores interessados em sua fruição
e fornecedores que ofertem a prestação – assim considerados aqueles que diretamente
prestam o serviço, como também os que o organizam, formatam a contratação, o paga-
mento e controlam sua execução.
Outra transformação recente permitida pela aplicação de tecnologias da informa-
ção, e da internet em especial, diz respeito à transformação no modo de execução dos
contratos, de modo que não apenas sua celebração se dá de modo automatizado (ou
mediante aceitação virtual do consumidor), senão também a execução, mediante ordens
predeterminadas que as partes contratantes def‌inem para que se realizem de modo au-
tomático, normalmente por intermédio de software que as viabiliza. Trata-se dos deno-
minados “contratos inteligentes” (ou “smart contracts”), que projetam a padronização
dos comportamentos dos contratantes, reduzindo a oportunidade de interação pessoal
entre as partes, também durante a execução do objeto contratual, sempre tendo em vista
o interesse útil presumido das partes na contratação.
A essas novas formas de oferta e contratação entre consumidores e fornecedores no
mercado de consumo, acrescenta-se, como resultado do novo paradigma tecnológico
da digitalização também a transformação de produtos e serviços, dando causa a novos
objetos da relação de consumo. Tem especial interesse, no atual estágio de desenvolvi-
mento tecnológico, os denominados bens digitais, também denominados digital assets
ou digital property. Assim, por exemplo, as mensagens de correio eletrônico arquivadas,
informações, arquivos (fotos, documentos) disponibilizados em rede social ou em site
de compras ou em plataformas de compartilhamento de fotos ou vídeos, os softwares que
contratam licença de uso on-line (mediante senha ou código) pelo tempo assegurado
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