A consensualidade no direito sancionador brasileiro: potencial de incidência no âmbito da Lei nº 8.429/1992
Autor | Emerson Garcia |
Ocupação do Autor | Doutor e Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa |
Páginas | 299-374 |
A CONSENSUALIDADE NO DIREITO
SANCIONADOR BRASILEIRO: POTENCIAL DE
INCIDÊNCIA NO ÂMBITO DA LEI Nº 8.429/1992
Emerson Garcia1
Resumo: o direito sancionador brasileiro, tradicional-
mente refratário à consensualidade, tem paulatinamente
reconhecido a sua importância em distintas instâncias
de responsabilização. O o condutor dessa mudança
tem sido a maior celeridade e ecácia na identicação
e reprimenda de condutas de elevado potencial lesivo
ao ambiente sociopolítico. O objetivo de nossas consi-
derações é o de apresentar uma visão global a respeito
da incorporação da consensualidade em nosso direi-
to sancionador, com análise mais detida a respeito de
sua possível aplicação aos ilícitos previstos na Lei nº
Sumário: 1. Considerações iniciais; 2. O direito sancio-
nador e as instâncias de responsabilização; 3. A consen-
sualidade na ordem jurídica brasileira; 4. Legalidade
e indisponibilidade do interesse nos negócios jurídicos
celebrados pelo Poder Público; 5. A consensualidade
1 Doutor e Mestre em Ciências Jurídico-Políticas pela Universidade de Lisboa.
Especialista em Education Law and Policy pela European Association for Edu-
cation Law and Policy (Antuérpia – Bélgica) e em Ciências Políticas e Interna-
cionais pela Universidade de Lisboa. Membro do Ministério Público do Estado
do Rio de Janeiro, Consultor Jurídico da Procuradoria-Geral de Justiça e Diretor
da Revista de Direito. Consultor Jurídico da Associação Nacional dos Mem-
bros do Ministério Público (CONAMP). Membro da American Society of Inter-
national Law e da International Association of Prosecutors (Haia – Holanda).
Membro Honorário do Instituto dos Advogados Brasileiros (IAB).
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uma análise crítica a partir dos julgados dos tribunais superiores - volume ii
na responsabilização administrativa; 6. A consensuali-
dade na responsabilização penal; 7. A consensualida-
de na responsabilização cível; 7.1. A experiência com
o compromisso de ajustamento de conduta no âmbito
da tutela coletiva; 7.2. A consensualidade no âmbito da
Lei de Responsabilização das Pessoas Jurídicas; 7.3. A
consensualidade no âmbito da Lei de Improbidade Ad-
ministrativa; Epílogo; Referências Bibliográcas.
1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Acordo e indisponibilidade do interesse são coisas que hurlent de
se trouver ensemble, isso para utilizarmos a conhecida máxima fran-
cesa. E por que gritam quando se encontram? Por uma razão muito
simples: não se transige com o que não se pode dispor. Apesar da
obviedade dessa constatação, é palpável, na realidade brasileira, que
situações de ruptura da ordem jurídica têm sido remediadas ou recom-
postas justamente a partir da consensualidade.
A consensualidade, em sua expressão mais simples, indica a con-
vergência de vontades em prol de um objetivo comum. Pode oscilar
entre os extremos da submissão ou da plena transação.
Na submissão, um dos acordantes se submete às diretrizes esta-
belecidas pelo outro. Tanto pode decorrer de uma opção do submisso
como estar vinculada ao desequilíbrio de forças, o que é bem mais
comum. Esse desequilíbrio pode ocorrer entre atores privados, nor-
malmente em razão da primazia econômica de um deles, ou entre
atores privados e públicos, em que a legislação ampara o público e
limita o privado, ou mesmo entre atores públicos, em razão da supe-
rioridade política ou econômica de um deles, o que é particularmente
nítido na federação brasileira, em que os entes federativos, apesar de
autônomos entre si, não conseguem ombrear com a União, que con-
centra as competências legislativas mais relevantes e tem primazia na
arrecadação tributária. A submissão é o modelo mais adotado quando
presente a indisponibilidade do interesse. Neste caso, há uma espécie
de norma-quadro, à qual devem ajustar-se os pactuantes.
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Na plena transação, os pactuantes, numa posição de total igualda-
de formal e material, acordam livremente direitos e obrigações, ins-
trumentalizando-os da forma que melhor lhes aprouver. Encontra-se
alicerçada no livre exercício da autonomia da vontade, que não so-
fre a inuência de qualquer limitador passível de comprometer a sua
exteriorização. Esse modelo, como é perceptível, mostra-se de todo
incompatível com a indisponibilidade, total ou parcial, dos interesses
envolvidos. Anal, a indisponibilidade limita o acordo passível de ser
realizado.
Além desses modelos extremos, é possível nos depararmos com
uma pluralidade de modelos intermédios. São modelos híbridos, em
que determinados aspectos do acordo somente admitem a submissão
e em outros prepondera a plena transação. Para que a coexistência
desses modelos seja possível, ou se identica uma livre manifestação
de vontade do pactuante que ocupa uma posição de primazia, anuindo
em conferir certa liberdade ao outro pactuante, ou se está perante uma
norma-quadro que limita o universo do acordo, indicando, desde logo,
o que é estranho ao poder de disposição dos pactuantes. Em ambos os
casos, como se percebe, uma parte do ajuste somente se compatibili-
za com a submissão de um dos pactuantes às diretrizes estabelecidas
pelo outro pactuante ou decorrentes da própria ordem jurídica.
No âmbito do direito sancionador, em razão de suas próprias carac-
terísticas estruturais, já que o Estado deve zelar pelos bens jurídicos
tutelados e o infrator pode sofrer sanções que restrinjam aspectos de
sua esfera jurídica insuscetíveis de plena disposição, como a liberda-
de ou, a depender do sistema, a própria vida, o modelo da plena tran-
sação dicilmente será adotado. Anal, caso houvesse total liberdade
entre os pactuantes, seria plenamente possível que o Estado deixasse
de estabelecer qualquer reprimenda ou afastasse por completo o dever
de reparação. Ou, no extremo oposto, que o infrator incursionasse na
própria essência das sanções a serem aplicadas.
Portanto, em rigor lógico, o direito sancionador mais se afeiçoa ao
modelo da submissão ou a um modelo híbrido. Apesar da compatibi-
lidade conceitual com o modelo da submissão, não se pode deixar de
observar que a plena e irrestrita sujeição às cominações legais rara-
mente será atrativa aos infratores, que certamente optarão por aguar-
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