O Dano Existencial nas Relações de Trabalho no Brasil e em Portugal: Um Sequestro da Personalidade do Empregado

AutorFlávio Luiz da Costa
Páginas152-162

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Ver Nota1

1. Introdução

Nos dias atuais tem-se discutido a possibilidade de reparação do dano existencial nas relações de trabalho.

A discussão, decerto, advém da grande evolução, nos últimos anos, na esfera da responsabilidade civil, principalmente na análise de interesses cuja violação enseja um dano reparável.

Historicamente os ordenamentos jurídicos tinham por tradição reconhecer apenas duas espécies de danos: os danos patrimoniais e os morais. Tudo que não afetasse o patrimônio material da vítima era alcunhado pela equivocada expressão “danos morais”. Evoluiu-se, no entanto, para que fosse observado que a melhor expressão a ser cunhada era de danos extrapatrimonias, para se albergar ao lado dos danos morais outros tipos de danos que vitimizam, mas não abrangem o patrimônio material, nestes incluídos os danos existenciais. Tal assertiva foi percebida em outros ordenamentos, como o italiano, o qual será tomado neste artigo como o referencial de origem para objeto de comparação.

Com maestria, ao prefaciar sua obra Critique du droit du travail, Alain Supiot2, enfatizou (aqui em tradução livre) que a razão humana não é jamais um dado imediato da consciência, sendo antes um produto de instituições que permitem que cada homem assegure sentido à sua existência, encontre um lugar na sociedade e lá possa expressar seu próprio talento.

Desse modo, o presente artigo buscou compreender como o dano existencial tem sido visto sob a luz das doutrinas, jurisprudências e dos diplomas legais do Brasil e de Portugal, visto que, em ambas as nações, tal conduta carece de previsão própria, o que, invariavelmente, obrigará a sua identificação enquanto conduta antijurídica, se evidenciada a sua caracterização, mesmo que nenhum dispositivo específico traga descrita a sua tipologia, uma vez que causa extrema lesão na pessoa vitimada, a ponto de afetá-la em seu direito fundamental como pessoa humana.

2. O dano existencial e seus desdobramentos
2.1. Do conceito de dignidade e de direitos fundamentais da pessoa

Sarlet3 leciona que o conceito de dignidade da pessoa humana tem profundos antecedentes na história da humanidade, construído através dos séculos e emergente do destaque de valores em determinada época das práticas sociais. Comumente se atribui a Kant a formulação de tal conceito, segundo o qual todo ser humano deveria ter o direito e as garantias de tratamento igualitário e fraterno4.

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Dessa forma, o conceito de dignidade da pessoa humana passa a ser um princípio construído historicamente e pelo qual se tem a noção da proteção integral do indivíduo contra toda forma de desprezo ou como tentativa de valoração de sua condição, conforme alude Lima:

A partir desta ideia [da proteção integral do ser humano] passamos também a reconhecer que ao ser humano não se pode atribuir valor ou preço, pois o ser humano em virtude tão somente de sua condição meramente biológica, gênero humano, e independentemente de qualquer outra circunstância, é possuidor de dignidade, isso de via unilateral, sendo então, segundo a concepção do direito moderno, “igual” aos seus demais diante da lei5.

Deste modo, o conceito de dignidade da pessoa humana é complexo em sua essência e desenvolve-se na esfera de ampla diversidade de valores sociais. Contudo, ainda conforme Sarlet, pode-se proceder ao entendimento do mesmo sob o prisma jurídico, o qual estabelece que por dignidade da pessoa humana entende-se como “a qualidade intrínseca e distintiva de cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração”6, que advêm da comunidade e do Estado.

Isto posto, conclui-se que o mesmo implica em uma série complexa de direitos e deveres, ditos fundamentais, que buscam assegurar a integridade da pessoa contra toda e qualquer conduta que possa degradá-lo ou desumanizá-lo, além de promover garantias de condições mínimas de existência, visando a uma vida saudável; dar condições e desenvolver a participação ativa do ser humano no destino da própria existência na coletividade.

O conceito de direitos fundamentais está circunscrito àqueles direitos do ser humano que são reconhecidos e positivados no âmbito do Direito Constitucional positivo de determinado país. A diferenciação de seu antecessor está no fato de os direitos humanos guardarem relação com os tratados e convenções internacionais, referindo-se a estas posições normativas que reconhecem o ser humano como tal, independentemente de posições jurídicas ou constitucionais.

Segundo estudos de Comparato7, o reconhecimento dos direitos humanos e consequente positivação dos direitos fundamentais foram possíveis pela própria evolução histórica da sociedade, descobertos por conta das necessidades prementes em cada época da civilização humana, em suas lutas pela limitação do poder político, lócus ideal para o acolhimento daqueles direitos.

Conceituação do dano existencial.

A evolução jurídica fez com que se entrasse na era de uma releitura do Direito Privado a ser visto pelo ângulo de sua constitucionalização. A nova leitura fez com que a pessoa humana fosse valorizada, incluindo-se, por óbvio, os direitos da personalidade, os quais, uma vez violados, passaram a ser considerados “dano à pessoa”. Aqui, pretende-se abordar uma das vertentes acerca desse dano à pessoa, que tem sido denominado de dano existencial.

A fonte aqui utilizada como sendo o nascedouro, embora cônscio de que o dano existencial é estudado em outras culturas jurídicas, é tomada do padrão italiano.

Na Itália, o regime da responsabilidade civil codificada é típica e a indenização decorrente de dano moral somente seria devida nos casos previstos na Lei ou se fosse originado de crime de conduta típica penal, sendo objeto de críticas, desde os idos de 1960, a dificuldade para abarcar outros danos morais. Necessitava-se, assim, de uma resposta doutrinário-jurisprudencial à limitação legislativa dos danos extrapatrimoniais. Havia, então, dificuldade para que fosse enquadrada juridicamente a responsabilidade civil por danos morais derivados de ilícitos meramente civis (ou seja, não penais).

A mudança na jurisprudência italiana acabou por reconhecer três tipos de danos – danos patrimoniais, morais e biológicos. Passaram-se, porém, sob a rubrica de “danos biológicos”, a serem indenizados os mais variados tipos de danos imateriais, que nada mais tinham a ver com o conceito naturalístico de danos “biológicos”.

Então, doutrina e jurisprudência acabam por absorver e difundir a noção de que havendo uma lesão a qualquer direito fundamental da pessoa, e não somente ao direito à saúde, restaria afrontada a dignidade humana, surgindo, assim, o dever de indenizar.

Tal tema interessou aos professores da Escola Tries-tina (da Universidade de Trieste/Itália), que acabaram por lançar novos pensamentos, já que diversos casos tratando de dano extrapatrimonial – que, a rigor, não

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poderiam ser decididos sob o epíteto de dano biológico – eram decididos com um alargamento inaceitável (já que o dano biológico deveria abranger apenas lesão à integridade física e psíquica).

Em artigos doutrinários escritos para a Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile, nos anos de 1993 e 94, cunharam a expressão danno esistenziale para agrupá-los.

Assim, a jurisprudência italiana passou a adotar uma classificação quádrupla, segundo a qual, ao lado dos danos patrimoniais, haveria um gênero de danos não patrimoniais, que abrangeria as espécies de danos morais subjetivos, danos biológicos e danos existenciais8.

Apenas para demonstrar essa classificação e esse surgimento, mediante a Decisão n. 233, de 2003, a Corte Constitucional italiana identificou e distinguiu os três danos não patrimoniais da seguinte forma: “[...] dano moral subjetivo seria a transitória perturbação do estado de ânimo da vítima; dano biológico em sentido estrito seria a lesão do interesse, constitucionalmente garantido, à integridade psíquica e física da pessoa, medicamente comprovada”; ao passo que o dano existencial seria o “[...] dano derivado da lesão a outros interesses de natureza constitucional inerentes à pessoa”9.

Isto demonstra, de forma clara, que os julgadores têm se preocupado com os reflexos que possam ser nocivos à integridade física e psíquica do indivíduo, trazidos por situações que possam alterar de forma substancial o curso de sua existência e entraves supervenientes à execução do planejamento que traçara para o seu futuro, fora de suas obrigações profissionais natas. É pensar na essência da dignidade da pessoa humana, aqui ponderada na figura do homem trabalhador!

A dignidade, em si, compõe-se de um conjunto de direitos universais, independentemente da diversidade sociocultural de onde esteja o homem.

E a existência humana digna, no seu exercício, independe até da capacidade da pessoa se relacionar, seja de forma física, biológica ou psíquica. Dispensa a autoconsciência ou compreensão da própria existência, dado que contínua sendo homem, mesmo com limitações.

Com isto, deve ficar garantido ao homem o seu direito de poder escolher caminhos, traçar metas, realizar todas as etapas da estrada que escolheu para que possa dar sentido à sua vida, dentro dos contornos do ordenamento jurídico.

Isto posto, não pode haver, por parte de terceiros, frustração da concretização de seus projetos, mesmo frente a um contrato pessoal e duradouro10.

Na seara do Direito do Trabalho, pode-se entender o dano existencial como aquele que impede a realização pessoal do trabalhador, reduzindo a sua qualidade de vida, frustrando projetos pessoais ou suas relações sociais, em consequência de condutas ilícitas por parte do...

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