Descentralização Produtiva e Terceirização da Atividade-Fim

AutorOtavio Amaral Calvet
Páginas163-172

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1. Introdução

O presente artigo tem a finalidade de explicar os motivos da adoção, pelo ordenamento jurídico brasileiro, da terceirização da atividade-fim, abandonando-se o modelo gestado pela jurisprudência por meio da Súmula n. 331 do TST, tecendo um conceito para o gê-nero descentralização produtiva do qual a terceirização constitui uma das espécies.

A descentralização como um fenômeno produtivo ocorre dentro de uma nova fase do consumismo, conhecida como sociedade de hiperconsumo, que “designa a terceira etapa histórica do capitalismo de consumo”2 caracterizada não apenas pelo novo tipo de ser consumidor e de maneiras de consumir, “mas também por novos modos de organização das atividades econômicas, novas maneiras de produzir e de vender, de comunicar-se e de distribuir.”3

A premissa dessa nova sociedade passa pelo fenômeno da “redescoberta do cliente”4 orientando-se o mercado pela procura do consumidor, o que é total-mente compatível com a flexibilidade então instalada no sistema toyotista, que possibilitou a diversificação da oferta na época da globalização, com desenvolvimento de empresas gigantes com marcas também globais, onde se estabeleceu um interessante paradoxo: “de um lado, a sociedade de hiperconsumo coincide com o triunfo da variedade e do ‘cliente rei’; do outro, é contemporânea da unificação mundial dos mercados e das gamas de produtos do desenvolvimento das megamarcas ou hipermarcas que, presentes nos cinco continentes, se baseiam em um marketing global, em produtos e slogans, logotipos e imaginários geridos de maneira internacional e mais ou menos adaptada às especificidades locais”5. Surge essa nova fase do consumo no “momento em que os dispositivos pós-fordistas se combinam com a terceirização e a individualização galopante do consumo”.6

Essa constatação da um modelo econômico global que produz conforme a demanda atendendo à diversi-dade, com total flexibilidade na produção, instigador de uma competição empresarial em nível internacional, gestado após a lógica da subcontratação, da estruturação em rede dos conglomerados empresariais, culminou na exportação dos parques de trabalho para empresas parceiras localizadas em qualquer parte do globo terrestre, obviamente buscando-se aquelas inseridas em sistemas de baixa proteção trabalhista como forma de se reduzir o custo da mão de obra e, assim, criar competitividade para atender à produção em massa do novo cenário mundial: o barateamento do valor efetivo do produto com o incremento do valor das marcas a ele agregadas, contribuindo para esse fator o constante marketing que busca lidar com a emoção do ser humano consumidor, preenchendo seu vazio existencial na era de mudança radical de valores pela satisfação do consumo.

De fato, é recorrente na propaganda em voga o apelo às necessidades emocionais, sendo comum observar-se

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a venda de produtos supérfluos ligados à ideia de satisfação de necessidades humanas, como deixa ver, por exemplo, um comercial de refrigerantes em que o apelo é não ao líquido em si, ou suas propriedades para o bem-estar do corpo, mas apenas a identificação com o prazer de se abrir uma garrafa para sorver o líquido ali contido com o slogan “Coca-cola – Abra a felicidade”7.

Ora, não se mede mais o valor de um produto pelo que ele efetivamente vale em termos de uso de matéria--prima e mão de obra, mas pelo que o consumidor está disposto a pagar para obter tal produto, sendo conhecida a estratégia empresarial adotada pela gigante “Apple” neste sentido, que não apenas vende tecnologia, mas desejo aliado a design e à criação de uma identificação com o público como distribuidor de uma nova categoria de produtos, gerando uma verdadeira legião de seguidores que chegam a se aglomerar por dias em filas aguardando o lançamento de novos produtos, mormente os aparelhos de celular, como nos dão conta diversas matérias jornalísticas8.

Esse apelo consumista, a necessidade de se manter à frente nas inovações tecnológicas, a criação de um sentimento de pertencimento ao grupo por aquilo que se possui, parecem ser características completamente amoldadas à nova sociedade de hiperconsumo que maximiza o individualismo e, pelo duvidoso uso da tecnologia de contato por redes sociais, acaba por afastar os seres humanos contribuindo para uma alienação do problema do outro e à banalização do sofrimento alheio como se fosse um espetáculo a ser assistido a distância, pois sob as telas digitais tanto o momento de festa como o de dor parecem retratos de uma história não vivida e que apenas se vislumbra como uma narrativa abstrata.

O novo individualismo, que na empresa institui a perda da solidariedade que caracterizou o movimento trabalhista do século XX, e a superficialidade do contato virtual, são elementos que estão afetando a relação das pessoas entre si e com o todo, instaurando a “modernidade líquida” onde “o ‘relacionamento puro’ tende a ser, nos dias de hoje, a forma predominante de convívio humano, na qual se entra ‘pelo que cada um pode ganhar’ e se ‘continua apenas enquanto ambas as partes imaginem que estão proporcionando a cada uma satisfações suficientes para permanecerem na relação’. O atual ‘relacionamento puro’, na descrição de Gid-dens, não é, como o casamento um dia foi, uma ‘condição natural’ cuja durabilidade possa ser tomada como algo garantido, a não ser em circunstâncias extremas. É uma característica do relacionamento puro que ele possa ser rompido, mais ou menos ao bel-prazer, por qualquer um dos parceiros e a qualquer momento. Para que uma relação seja mantida, é necessária a possibilidade de compromisso duradouro. Mas qualquer um que se comprometa sem reservas arrisca-se a um grande sofrimento no futuro, caso ela venha a ser dissolvida.”9

O breve resumo do cenário do atual ideário de nossa sociedade globalizada, privatizada e fragmentada, viabiliza a procura por produtos de forma também individualista, preocupando-se o consumidor apenas com a satisfação de seus interesses sem cogitar dos problemas envolvidos para a produção daquela peça ou oferecimento daquele serviço de que pretende usufruir, quase que se instalando um estado de sobrevivência em que nem se quer cogitar nos meios que levaram ao fim-consumo, o que gera a escolha do que consumir por dois fatores básicos que tentam se equilibrar: preço e marca.

Em escala global assiste-se a uma interessante inflexão no mercado: a nova forma de administração do trabalho tende a excluir a maior quantidade possível de pessoas dos postos de ocupação (ao menos formais) e ao mesmo tempo necessita-se aumentar a massa de consumidores para se viabilizar a manutenção e expansão das empresas e do próprio capitalismo. Instala-se, portanto, uma contradição dentro do capitalismo, que por ora encontra saída no consumo de classes sociais de menor poder de renda.

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Não à toa percebe-se um aumento da exclusão de trabalhadores do emprego formal protegido e uma busca justamente pelos consumidores das classes “C” e “D”, considerados como a nova classe média que abastece o mercado de consumo conforme evidencia a matéria jornalística que tem como premissa: “Em ascensão e ávidas por consumo, as classes C e D movimentaram em 2010 um mercado de R$ 834 bilhões, despertando o interesse da indústria de bens e serviços, que agora corre atrás para atender às necessidades desses consumidores”; e dispõe que “enquanto a nomenclatura das classes sociais sofre mudanças, o ingresso de milhares de novos consumidores com poder de compra gera um desafio para as empresas, ou seja, aquelas que pensam em arrebanhar fatias desse público vão precisar agir, e com rapidez. É preciso rever alguns conceitos (...). Porém, uma coisa é certa, muitos empresários brasileiros já descobriram que para serem líderes em qualquer segmento é necessário primeiro serem líderes na classe C.”10

E justamente no cenário da produção em massa com foco no preço reduzido em um mundo globalizado e conectado, a descentralização da produção encontrou ambiente favorável a sua afirmação, tornando-se um verdadeiro fenômeno produtivo, com todas as suas implicações para o Direito do Trabalho, não apenas jurídicas mas também sociológicas e filosóficas, pois questiona-se até mesmo se a finalidade do trabalho construída na era industrial ainda prevalece, se a solidariedade social deve ou não prevalecer perante as necessidades individuais.

Importa, portanto, a fixação de um conceito de descentralização para se delimitar o fenômeno produtivo que afeta sobremaneira o Direito do Trabalho e que exigiu maior flexibilidade das regras trabalhistas, mormente no que concerne à facilitação para contratação a termo (do tipo “provisória” ou “precária”), contratos a tempo parcial e facilitação da extinção dos contratos.

Vale registrar que, no Brasil, as duas primeiras flexibilizações ocorreram, não por acaso, nos idos da década de 90, durante o governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso, considerado de matiz neoliberal em questões trabalhistas, sendo que o trabalho a tempo parcial foi instituído pela Medida Provisória n. 1.709/1998 e o contrato a termo chamado de “provisório” por meio da Lei n. 9.601/1998. Importante lembrar que a extinção do contrato de trabalho sofreu grave revés também no mesmo período com a denúncia feita pelo mesmo Presidente da República antes citado à Convenção 158 da Organização Internacional do Trabalho, que vigeu da publicação do Decreto n. 1.855/1996 em 10 de abril de 1996 pelo qual se finalizou o procedimento de ratificação até a publicação do Decreto n. 2.100/1996 que formalizou sua denúncia em 20 de dezembro de 1996,11 restando, portanto, bem claro que também nosso ordenamento jurídico procurou se adaptar às novas necessidades da produção descentralizada, acompanhando o fenômeno mundial de mudança de bases do sistema produtivo em claro detrimento da proteção...

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