O direito protetivo após a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência, o novo CPC e o Estatuto da Pessoa com Deficência

AutorJoyceane Bezerra de Menezes
Ocupação do AutorDoutora em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco
Páginas573-610
O direito protetivo após a Convenção sobre
a proteção da pessoa com deficiência, o novo CPC
e o Estatuto da Pessoa com Deficiência: da
substituição de vontade ao modelo de apoios1 2
Joyceane Bezerra de Menezes*
Queremos ser escuchados y queremos tomar decisiones so-
bre cómo llevar nuestra vida. A veces podríamos necesitar
ayuda para tomar decisiones, pero eso no significa que no
podamos decidir.” (Independiente pero no solo: informe mun-
dial sobre el derecho a decidir. Inclusion Internacional)
1. Introdução
No Brasil, a curatela é um instituto antigo que remonta às ordenações
lusitanas. Seu perfil funcional sempre esteve voltado à proteção integral da
pessoa maior e incapaz, confiando-se ao curador a tarefa de representá-la ou
assisti-la na prática dos atos da vida civil em geral, ante a pressuposição de
sua total ou parcial incapacidade de fazê-lo por si mesma. Como na estrutu-
ra do Direito Civil tradicional esses atos estavam concentrados na seara dos
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1 Estudo desenvolvido no curso do estágio pós-doutoral sob supervisão de Maria
Celina Bodin de Moraes, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Parte das
atividades previstas na execução do Projeto intitulado “A simbiose entre o público e o
privado no Direito civil-constitucional: uma discussão sobre o espaço da autonomia
ético-existencial, intimidade e vida privada”, nº: 552337/2011-0. Chamada Pública
MCT/CNPq/MEC/CAPES – Ação Transversal nº 06/2011 – Casadinho/Procad.
2 Texto publicado originariamente na revista Civilistica.com. Disponível em:
http://civilistica.com/o-direito-protetivo-no-brasil/.
* Doutora em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco. Mestre em
Direito pela Universidade Federal do Ceará. Professora titular da Universidade de
Fortaleza. Programa de Pós-Graduação Strictu Senso em Direito (Mestrado/Dou-
torado) da Universidade de Fortaleza, na Disciplina de Direitos de Personalidade.
Professora adjunto da Universidade Federal do Ceará. E-mail: joyceane@unifor.br.
contratos, no regime da apropriação e no âmbito das relações familiares, os
três pilares centrais do sistema privado,3 a atuação do curador era regula-
mentada e concentrada em atenção aos interesses patrimoniais. Ainda que
coubesse ao curador a administração da pessoa do curatelado, o exercício da
curatela no plano das questões existenciais não merecia condicionamento
legal específico.
As guerras do século XX, assim como as atrocidades perpetradas com o
auxílio da ciência e da tecnologia,4 reafirmaram um acordo mundial pela
promoção da humanidade e de cada ser humano per se, de sorte que o res-
peito aos direitos humanos passou a representar a melhor medida do grau
de civilização. Sob essa perspectiva, para além dos documentos internacio-
nais gerais sobre os direitos do homem, emergiu uma segunda fase de pro-
teção da pessoa, por meio de tratados ou convenções voltados para a tutela
de grupos específicos, como as crianças, as mulheres, os negros, os índios e
os deficientes.5 Na mesma esteira, as constituições dos estados ocidentais
passaram a desenvolver uma proteção mais concreta à pessoa, ampliando o
catálogo dos direitos e das garantias fundamentais, em sua grande maioria,
calcados no princípio da dignidade da pessoa humana. Os efeitos dessa onda
protetiva chegaram ao direito privado, notadamente, pela emergência dos
direitos de personalidade.
Direitos humanos,6 direitos fundamentais e direitos de personalidade se
entrelaçaram para viabilizar uma tutela geral da pessoa nas relações públicas
e privadas, considerando-se que nessas últimas também se verificam lesões
à dignidade e aos direitos mais eminentes do sujeito. Exemplificativamente,
as pessoas com deficiência psíquica e intelectual foram, por muito tempo,
excluídas de uma maior participação na vida civil, tiveram a sua capacidade
jurídica mitigada ou negada, a sua personalidade desrespeitada, seus bens
espoliados, a sua vontade e a sua autonomia desconsideradas. Se a capacida-
de civil foi usada como critério para permitir o exercício de certos direitos
fundamentais, as pessoas com deficiência viveram uma cidadania de segun-
da classe, pois a fragilidade de sua capacidade de exercício também impli-
cou baixo gozo de alguns daqueles direitos.
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3 FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar,
2000, p. 13.
4 TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Tratado de direito internacional dos di-
reitos humanos. Vol. II. Porto Alegre: Fabris Editor, 1999, p. 336.
5 PIOVESAN, Flávia. Convenção da ONU sobre os Direitos das Pessoas com Defi-
ciência: inovações, alcance e impacto. In: FERRAZ, Carolina Valença et al. (coord.).
Manual dos direitos das pessoas com deficiência. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 33-51.
6 O Brasil já ratificou os tratados internacionais mais significativos do sistema glo-
bal, em material de direitos humanos. Da mesma forma, também é signatário de quase
todos os tratados do sistema interamericano de direitos humanos.
Com o intuito de lhes garantir uma proteção especial e assegurar-lhes
uma participação efetiva na vida comunitária, a Organização das Nações
Unidas — ONU promulgou a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com
Deficiência (CDPD) e seu protocolo facultativo, no ano de 2007. No Brasil,
o documento teve a sua aprovação por meio do Decreto nº 186/2008, com
quórum qualificado de três quintos, nas duas casas do Congresso Nacional,
em dois turnos, conforme instrui o art. 5º, §3º, da Constituição Federal,
logrando alcançar a hierarquia de norma constitucional. Por cautela adicio-
nal e para evitar eventuais prejuízos ante as divergentes interpretações des-
se dispositivo constitucional, o Presidente da República ratificou e promul-
gou a Convenção por meio do Decreto Presidencial nº 6.949/2009, cum-
prindo o rito de ratificação dos tratados em geral.7
Sob inspiração do modelo social de abordagem,8 a Convenção definiu a
deficiência como um impedimento ou limitação duradoura de natureza físi-
ca, mental, intelectual ou sensorial que, em interação com as diversas bar-
reiras sociais, pode obstruir a participação plena e efetiva na sociedade (art.
1º). E, para alcançar seu principal objetivo, que é o de garantir a inclusão
participativa da pessoa com deficiência, propôs aos Estados signatários a
mitigação das barreiras sociais e institucionais que se prestam apenas ao
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7 MAZZUOLI, Valério de Oliveira. O novo § 3º do art. 5º da Constituição e sua
eficácia. Revista de Informação Legislativa, 2007, v. 41, n. 167, jul./set. 2005, p. 103.
Disponível em: http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/739/R167-
08.pdf?sequence=4. Acesso em: 02 jul. 2015.
8Al contrario de lo sustentado por el modelo médico, desde los años sessenta y seten-
ta del siglo passado, comienza a abrirse caminho un nuevo concepto que cambia la visión
tradicional que se venía teniendo de la discapacidad u que traslada el foco de lo indivi-
dual a social, de la discapacidad como carência de la persona que hay remediarse, a la
discapacidad como produto social, como constructo resultado de las interaciones entre
um individuo y un entorno no concebido para él. El modelo social atenua fuertemente los
componentes médicos de la discapacidad, que serian unos más dentro de una série, y
ressalta los sociales, los fatores ambientales, que resultan determinantes. Así, al consi-
derar que las causas que están en el origen de la discapacidad son sociales, perde parte
de sentido la intervención puramente médica. Las “soluciones” no deven tener cariz in-
dividual respecto de cada persona concreta “afectada”, sino que más bien deben dirigir-
se a la sociedade. A diferencia del modelo médico que se asienta sobre la rehabilitación
de las personas con discapacidad, el modelo social pone el ênfase en la rehabilitación de
una sociedade, que ha de ser concebida y diseñada para hacer frente a las necessidades
de todas las personas, gestionando las diferencias e integrando la diversidade”. (PÉREZ
BUENO, Luis Cayo; LORENZO GARCÍA, Rafael. Los difusos limites de la discapaci-
dad en el futuro. Hacia un nuevo estatuto de la discapacidad. In: LOURENZO, Rafael
de; PÉREZ BUENO, Luiz Cayo (Diretores). Tratado sobre discapacidad. Navarra:
Aranzadi, SA, 2007, p. 1.553.

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