O tratamento que o Estatuto da Criança e Adolescente confere aos seus destinatários é emancipador?

AutorThaís Fernanda Tenório Sêco
Ocupação do AutorDoutoranda em Direito pela UFMG, Mestre em Direito Civil pela UERJ. Professora de Direito Civil do Departamento de Direito da UFLA
Páginas481-505
O tratamento que o Estatuto da Criança
e Adolescente confere aos seus destinatários
é emancipador?
Thaís Fernanda Tenórico Sêco*
Introdução
Anteriormente ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), tive-
mos em vigor, no Brasil, outra legislação especial sobre o tema da menorida-
de, que era o Código de Menores de 1979. Anteriormente a isso, às crianças
e aos adolescentes era dispensado u tratamento genérico, presente na Parte
Geral e no Livro do Direito de Família do Código Civil de 1916. Funda-
mentalmente, eram incapazes para os atos da vida civil e sujeitas ao poder
familiar.
É ao longo do século XX que nasce e se desenvolve um interesse político
pela criança e pelo adolescente. Desde seus primeiros anos, a questão polí-
tica a respeito da infância começou a aparecer em obras e discursos (trata-
das, algumas vezes, é verdade, de forma a expressar projetos totalitários de
poder e concepções eugênicas da sociedade). A Declaração Universal dos
Direitos da Criança da ONU data de 1954. E, no Brasil, além dos diplomas
referidos acima, aprovados em 1979 e 1990, há o artigo 227 da Constituição
de 1988 que trata especificamente do direito das crianças, além de outras
disposições esparsas.
Que significam essas disposições especiais que tratam do direito da
criança e do adolescente?
Em primeiro lugar, é notável que o surgimento desses diplomas éparte
do fenômeno que foi chamado de “descodificação”.1 A rigor, a “descodifi-
*
.Doutoranda em Direito pela UFMG, Mestre em Direito Civil pela UERJ. Profes-
sora de Direito Civil do Departamento de Direito da UFLA.
1 Como é característico da obra de Orlando Gomes (1936), que contemplava ten-
dências de maneira sempre muito adiantada no tempo, em 1936 ele já dava conta dos
pontos em que a técnica da codificação se mostrava insuficiente no artigo ‘A agonia do
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cação” éa tendência de criação de leis especiais para tratar de temas especí-
ficos cuja generalidade dos códigos civis não poderia tratar satisfatoriamen-
te. O estatuto jurídico das crianças e adolescentes é um excelente exemplo
das pressões que levam à descodificação. A generalidade com que eram sim-
plesmente enquadradas como incapazes sujeitos ao poder familiar não dava
conta de outras questões inerentes à afirmação dos direitos das pessoas des-
de o seu nascimento, e ainda quando menores de idade.
Em segundo lugar, um ponto que por vezes passa despercebido quando
falamos em descodificação é o caráter interdisciplinar dessas leis especiais
que, de certa forma, subvertem a lógica de classificação das normas que foi
herdada do século XIX e que se consolidou nas codificações. O ECA não
trata exclusivamente de temas afeitos ao direito civil, mas também de te-
mas do direito penal, do direito administrativo e até do direito processual.
Em uma lei extravagante como o ECA serão encontradas normas atinen-
tesa quaisquer dessas disciplinas, e que lá estão reunidas em função de um
critério diferente: o sujeito de direito ali tratado e suas peculiaridades. A
atitude expressada em uma legislação deste tipo é a de reconhecer que
crianças e adolescentes são titulares de direito, mas a fase de vida em que se
encontram implica caracterizações especiais (ou não) para a maneira pela
qual essa titularidade se exerce.
É neste espírito que buscaremos refletir sobre a pergunta posta, a res-
peito do caráter emancipador ou não do ECA no tratamento conferido aos
seus destinatários.
1. O que é emancipação?
A “emancipação” referida na pergunta, naturalmente, não é aquela pre-
vista no parágrafo único do artigo do código civil. Trata-se, ao invés disso,
de emancipação em sentido filosófico. Mas o que é essa emancipação? Re-
gressemos um pouco à ideia geral de direitos humanos para entender o que
ela significa.
A Revolução promovida pelo discurso iluminista da liberdade e da igual-
dade não se realizou plenamente desde o primeiro momento. Já muito se
disse que a grande emancipação ocorrida no século XVIII foi da classe bur-
guesa, mas isso não diz o suficiente. A emancipação seletiva trouxe consigo
outros recortes, de gênero, de idade, de intelecto, de local de nascimento,
de raça (HUNT, 2009; PRIORE, 1989).
O discurso, não obstante, era universalista. Reivindicava sua validade
com relação a todo “homem” (do que se diz, hoje, que por “homem” se
pretendeu abranger todo gênero humano), mantendo então o ônus de justi-
ficar as formas de diferenciação produzidas no âmbito da política e do direi-
to. Foi assim que certas categorias de diferenciação de pessoas herdadas do
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