O novo instituto da Tomada de Decisão Apoiada: instrumento de apoio ao exercício da capacidade civil da pessoa com deficiência instituído pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência - Lei Brasileira de Inclusão (Lei nº 13.146/2015)

AutorJoyceane Bezerra de Menezes
Ocupação do AutorDoutora em Direito pela Universidade Federal de Pernambuco
Páginas669-702
O novo instituto da Tomada de Decisão Apoiada:
instrumento de apoio ao exercício da capacidade
civil da pessoa com deficiência instituído pelo
Estatuto da Pessoa com Deficiência – Lei Brasileira
de Inclusão (Lei nº 13.146/2016).
Joyceane Bezerra de Menezes
“o reconhecimento da dignidade inerente e dos direitos
iguais e inalienáveis de todos os membros da família humana
é o fundamento da liberdade, justiça e paz no mundo.”
Preâmbulo da Declaração Universal dos Direitos do Ho-
mem – ONU.
1 Introdução: a emergência da tomada de decisão apoiada como ex-
pressão do sistema protetivo-emancipatório de direitos humanos
A despeito da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948,
promulgada pela Organização das Nações Unidas, cujo preâmbulo se usou
como epígrafe deste capítulo, nem todos os membros da família humana
chegaram ao século XXI com o reconhecimento efetivo dessa dignidade.
Isso se explica, segundo G. Peces-Barba, pelo fato de o ideal de dignidade
humana haver sido construído sob um modelo de ser humano ilustrado e
delineado por um conjunto de características estéticas e éticas que reme-
tiam a um padrão de perfeição.1 O protótipo do agente apto a participar do
*
Doutora em Direito pe la Universidade Federal de Pernambuco. Mestre em Direito
pela Universidade Federal do Ceará. Professora titular da Universidade de Fortaleza.
Programa de Pós-Graduação Strictu Senso em Direito (Mestrado/Doutorado) da Uni-
versidade de Fortaleza, ministrando a Disciplina de Direitos de Personalidade. Profes-
sora adjunto da Universidade Federal do Ceará, ministrando a disciplina de Direito de
Família. E-mail: joyceane@unifor.br.
1 MARTINEZ, Gregório Peces-Barba. La dignidad de la persona desde la Filosofia
del Derecho. Col. Cuadernos Bartolomé de las casas. Num. 26. Dykinson: Madrid,
2003, p.28-55.
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discurso moral por sua capacidade de raciocinar, sentir e de se comunicar,
manifestando as competências indispensáveis ao desempenho de seu papel
social.2 Aos outros, considerados incapazes, seriam atribuídos direitos não
sob o fundamento da sua dignidade, mas em virtude de os outros sujeitos
capazes considerá-los merecedores dessa atribuição.3 Para essa direção con-
verge a conclusão de Luigi Ferrajoli4 sobre a persistência do status da capa-
cidade e da cidadania como barreiras ao acesso aos direitos fundamentais,
especialmente à igualdade.
Em virtude de uma limitação intelectual ou psíquica duradoura, muitas
pessoas qualificadas como deficientes foram totalmente excluídas dos pro-
cessos sociais e reduzidas à condição de mero objeto de proteção. À mesma
condição também foram lançadas aquelas outras que, no curso da vida, ad-
quiriram limitações semelhantes em virtude de algum tipo de acidente ou
demência.5
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2 ROIG, Rafael de Asis. Derechos humanos y discapacidad. Algunas reflexiones de-
rivadas del analise de la discapacidad desde la teoria de los derechos. In CAMBOY
CERVEJA, Ignácio. Igualdad, no discriminacion y discapacidad: una vision integrado-
ra de las realidades española y argentina. España: Dikinson, 2008, p. 32-33.
3 “Aquellos que no tuvieram esas capacidades podrían tener atribuídos derechos,
pero no justificados desde la idea de la dignidade humana, sino como fruto de la deci-
sión de los sujetos capaces al considerar-los como merecedores de dicha atribución.”
RÓIG, Rafael de Asis. Op.cit., p.35-36.
4 Ferrajoli denuncia que a cidadania e a capacidade civil tem sido os status que ainda
limitam a igualdade das pessoas humanas. Segundo ele, “estas clases de sujetos han
sido identificadas por los status determinados por la identidad de ‘persona’ y/o de ‘ciu-
dadano’ y/o ‘capaz de obrar’ que, como sabemos, en la historia han sido objeto de las
más variadas limitaciones y discriminaciones. Personalidad, ciudadanía y capacidad de
obrar, en cuanto condiciones de la igual titularidad de todos los (diversos tipos) de
derechos fundamentals, son consecuentemente los parámetros tanto de la igualdad
como de la desigualdad en droits fondamentaux. Prueba de ello es el hecho de que sus
presupuestos pueden – y han sido historicamente – más o menos extensos: restringidí-
simos en el pasado, cuando por sexo, nascimiento, censo, instrucción o nacionalidad se
excluía de ellos a la mayor parte de las personas físicas, se han ido ampliado progresi-
vamente aunque sin llegar a alcanzar todavía, ni siquiera en la actualidad, al menos por
lo que se refiere a la cidadanía y a la capacidad de obrar, una extension universal que
comprenda a todos los seres humanos”. (FERRAJOLI, Luigi. Los fundamentos de los
derechos fundamentales. Madrid: Trotta, 2009, p.22).
5 Relatório da Organização Mundial de Saúde estima que há cerca de 35,5 milhões
de pessoas com demência em todo mundo. Estima-se que este número será duplicado
a cada 20 anos, chegando a 65,7 milhões em 2030 e a 115,4 milhões em 2050 segundo
dados fornecidos pelo Relatório de 2012 da Organização Mundial da Saúde (OMS) reali-
zado juntamente com a associação Internacional de Doença de Alzheimer (ADI). Con-
Compreendidas entre as pessoas sem o necessário discernimento para a
prática dos atos da vida civil, poderiam sofrer os efeitos da interdição, per-
der a capacidade civil e ver comprometido, ao cabo e ao fim, o livre desen-
volvimento de sua personalidade. Ainda que a lei permitisse a alternativa da
interdição parcial, na qual o curador funcionaria como assistente do curate-
lado interdito, na maior parte dos casos, os juízes aplicavam a medida mais
extrema consistente na interdição total, atribuindo àquele os poderes da
representação que implicava na substituição de vontade do incapaz repre-
sentado.6 O curador, representando o “incapaz”, agiria segundo a sua pró-
pria vontade mas em nome do curatelado.
Ainda que se pudesse justificar a medida mais extrema para resguardar
os interesses patrimoniais da pessoa sob curatela, a representação por subs-
tituição de vontade é prejudicial ao exercício e ao gozo de certos direitos
fundamentais. Há direitos que, por sua natureza personalíssima, não permi-
tem a separação entre capacidade de exercício e capacidade de gozo, como
no exemplo do casamento, do planejamento familiar, da liberdade de cren-
ça e culto, dentre outros.
Além disso, os tradicionais processos de interdição não permitiam a aná-
lise pormenorizada das vicissitudes circundantes à história de cada pessoa.
Observava-se a deficiência enquanto patologia e não o sujeito, a pessoa de
carne7 cujos interesses estavam em discussão. Desconsiderava-se que, inde-
pendentemente do diagnóstico, o conjunto de fatores pessoais e de expe-
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forme este relatório, a cada 4 segundos, um novo caso de demência é detectado no
mundo e a previsão é de que em 2050, haverá um novo caso a cada segundo. Disponível
em: “http://www.institutoalzheimerbrasil.org.br/demencias-detalhes-Instituto_Alz-
heimer_Brasil/33/entendendo_a_doenca_de_alzheimer__da__atraves_de_estudos
realizados _com_populacoes__epidemiologia_”. Acesso em 12 de fevereiro de 2016.
6 Relatório produzido a partir de audiência pública promovida pela Câmara dos De-
putados, no Seminário “Há banalização nos atos de interdição no Brasil”, registra que a
medida tem sido utilizada reiteradamente, especialmente em razão das exigências do
Instituto Nacional da Seguridade Social para a concessão do benefício assistencial pre-
visto na LOAS – Lei nº 8.742, de 07 de dezembro de 1993. Segundo o relatório, até
pessoa que sofre de epilepsia foi submetida a interdição total. Disponível em:
“http://www.crprj.org.br/publicacoes/relatorios/interdicao-judicial.pdf”. Acesso em
23 de março de 2016.
7 Faz-se uso da expressão usada por Stèfano Rodotà, quando passa a criticar a quali-
ficação abstrata da categoria do direito civil moderno – sujeito de direito e sustenta a
importancia de se considerar a pessoa singularmente considerada. “Se produce, pues,
la transición del individuo a la persona, del sujeto de derecho al sujeto de carne que
permite dar progresiva relevancia al destino de socialización de la persona y al destino
de naturaliza de su organismo.” (In El derecho a tener derecho. Madrid: Editorial Trota,
2014, p.143-144).

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