Notas sobre a autocuratela e o Estatuto da Pessoa com Deficiência

AutorPaula Greco Bandeira
Ocupação do AutorDoutora e Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Sócia do escritório Gustavo Tepedino Advogados
Páginas635-657
Notas sobre a autocuratela e
o Estatuto da Pessoa com Deficiência
Paula Greco Bandeira*
1. Introdução: o escopo protetivo do Estatuto da Pessoa com
Deficiência
Na esteira do direito civil tradicional, de cunho patrimonialista e indivi-
dualista, em que se tutelava o sujeito abstrato e titular do patrimônio1, o
regime das incapacidades, inicialmente destinado a proteger os incapazes na
prática de atos patrimoniais, expandiu-se para atingir também atos não pa-
trimoniais, aniquilando a autonomia de pessoas com alguma espécie de de-
ficiência. Nesse cenário, o incapaz restava impossibilitado de exercer seus
direitos da personalidade, não se lhe reconhecendo a capacidade de exercí-
cio, restrita às pessoas maiores e capazes. A curatela vigia, assim, como me-
canismo de substituição da vontade do incapaz, em que o curador, a quem
se reconheciam poderes de representação, agia em nome e no interesse do
curatelado na prática de atos patrimoniais e existenciais.2
*
Doutora e Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ). Sócia do escritório Gustavo Tepedino Advogados.
1 Na síntese de Pietro Perlingieri: “A categoria do ser é subordinada àquela do ter:
quem possui “é” (PERLINGIERI, Pietro. Perfis de Direito Civil: Introdução ao Direi-
to Civil Constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 4).
2 Na doutrina clássica de Clovis Bevilaqua: “Curatela é o encargo público, conferido,
por lei, a alguém, para dirigir a pessoa e administrar os bens dos maiores, que por si não
possam fazê-lo. (...) Modifica-se de acordo com as suas diversas modalidades e segun-
do a necessidade da proteção devida ao curatelado” (BEVILAQUA, Clovis. Código
Civil dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1960. v. 2. p. 349,
grifou-se). V. tb. a definição de curatela na doutrina especializada: “Curatela – Encargo
conferido à pessoa de idoneidade moral e econômica por sentença fundamentada, de-
cretadora da incapacidade absoluta (interdição) ou relativa de pessoa de maioridade
com o encargo de protegê-la, representá-la ou de assisti-la e de administrar os bens do
interditado, com poderes plenos ou limitados. Assim, enquanto a tutela (v.) é o encar-
go de proteção assistencial de pessoa de menoridade, a curatela é de pessoa de maiori-
dade, interditada por sentença” (GUSMÃO, Paulo Dourado de. Dicionário de Direito
de Família: Verbetes com Jurisprudência. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 370).
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Com o reconhecimento da incidência dos princípios constitucionais às
relações privadas e do princípio da dignidade da pessoa humana como valor
central do ordenamento jurídico3, evidenciou-se a necessidade de inclusão
das pessoas com deficiência nas relações sociais, e de sua participação na
tomada de decisões que realizem a sua autonomia e sua personalidade.4
Nessa direção, sustentou-se, em doutrina, a constitucionalização do re-
gime das incapacidades, que haveria de ser remodelado à luz do perfil fun-
cional que atinge os fatos jurídicos.5 Nesta perspectiva funcional, o instituto
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3 Sobre o tema, v., por todos, Gustavo Tepedino: “A promulgação do Código Civil
de 2002 impôs uma reflexão acerca dos paradigmas axiológicos que devem nortear o
intérprete na reconstrução dos institutos de direito privado. A este respeito, deve-se
observar que o direito civil assistiu ao deslocamento de seus princípios fundamentais
do Código Civil para a Constituição. Tal realidade, reduzida por muitos a fenômeno de
técnica legislativa, ou mesmo à mera atecnia, revela profunda transformação dogmáti-
ca, em que a autonomia privada passa a ser remodelada por valores não patrimoniais,
de cunho existencial, inseridos na própria noção de ordem pública. Propriedade, em-
presa, família, relações contratuais tornam-se institutos funcionalizados à realização
dos valores constitucionais, em especial da dignidade da pessoa humana, não mais ha-
vendo setores imunes a tal incidência axiológica, espécies de zonas francas para a atua-
ção da autonomia privada. A autonomia privada deixa de configurar um valor em si
mesma, e será merecedora de tutela somente se representar, em concreto, a realização
de um valor constitucional” (TEPEDINO, Gustavo. Normas Constitucionais e Direi-
to Civil na Construção Unitária do Ordenamento. In: Temas de Direito Civil. TEPE-
DINO, Gustavo. Tomo III. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 13-14).
4 Como bem sublinhou Maria Celina Bodin de Moraes: “(...) Dado o caráter norma-
tivo dos princípios constitucionais, princípios que contêm valores ético-jurídicos forne-
cidos pela democracia, isto vem a significar a completa transformação do direito civil,
de um direito que não mais encontra nos valores individualistas de outrora o seu funda-
mento axiológico. Neste ambiente, de um renovado humanismo, a vulnerabilidade
humana será tutelada, prioritariamente, onde quer que ela se manifeste. De modo que
terão precedência os direitos e as prerrogativas de determinados grupos considerados,
de uma maneira ou de outra, frágeis e que estão a exigir, por conseguinte, a especial
proteção da lei. Nestes casos estão as crianças, os adolescentes, os idosos, os portadores
de deficiências físicas e mentais” (O conceito de dignidade humana: substrato axioló-
gico e conteúdo normativo. In: Constituição, Direitos Fundamentais e Direito Priva-
do. SARLET, Ingo Wolfgang (org.). Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2003,
p. 115-116).
5 V., sobre o ponto, Ana Carolina Brochado Teixeira, que assim sintetiza este pen-
samento: “Diante dos comandos da contemporaneidade, que ditam novas relações ju-
rídicas e novas experiências, é imperioso um repensar sobre as normas jurídicas até
então postas, de modo a vincular sua interpretação aos comandos constitucionais, prin-
cipalmente no que tange ao alcance da concretização da dignidade humana, em toda e
qualquer situação jurídica. Conforme o que foi exposto, a finalidade precípua do regi-

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