Doação de órgãos e tecidos

AutorMaria De Fátima Freire De Sá/Bruno Torquato De Oliveira Naves
Ocupação do AutorDoutora em Direito pela UFMG e Mestre em Direito pela PUC Minas/Doutor e Mestre em Direito Privado pela PUC Minas
Páginas345-368
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DOAÇÃO DE ÓRGÃOS
E TECIDOS
Diz a célebre lenda dos Santos Cosme e Damião que por
pura caridade exerciam medicina (representadas em pin-
turas de Fra Angelico e de Fernando Gallegos – 1745-
1550): “Para substituir a perna gangrenada de um doente
que tinham necessidade de amputar foram os Santos ao
cemitério, em busca de uma que lhes pudesse servir para
aquele m. O único cadáver utilizável naquela ocasião era
o de um negro etíope, mas os Santos não tinham precon-
ceitos raciais nem problemas de histocompatibilidade. Re-
tiraram, pois, do cadáver o segmento do membro de que o
enfermo carecia e a transplantação foi, por graças de Deus,
um êxito completo, realçado ainda pela diferença da cor.1
1. AS LENDAS
Historiadores de religião erigem mitos em histórias sérias, maneira de as
sociedades descreverem como a realidade vinha a ser. Mitos são paradigmas
para os atos humanos signicativos, frequentemente histórias sagradas de
criativas façanhas de seres sobrenaturais.
1 SOUZA, Armando Tavares de. Curso de história da medicina, p. 141. Apud SANTOS, Maria Celeste
Cordeiro Leite. Transplantes de órgãos e eutanásia. São Paulo: Saraiva, 1992, p. 127.
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MARIA DE FÁTIMA FREIRE DE SÁ | BRUNO TORQUATO DE OLIVEIRA NAVES
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A noção de substituir órgãos doentes do corpo por outros saudáveis, entre
diferentes espécies, remonta pelo menos a três mil anos na Medicina mitoló-
gica. É certo que lendas não podem ser aferidas pela racionalidade, nem há
como vericar sua autenticidade. Mas vários mitos emergiram da fé religiosa
de diferentes civilizações: da fé, que não é racional.
Assim, embora a literatura médica contemporânea sobre transplantes a
os últimos cem anos credite ao cirurgião suíço Jacquet Riverton a primazia de
tentar um transplante, na Medicina antiga, deuses cimérios, heróis e curandei-
ros eram partícipes dos atos cirúrgicos, segundo a associação lendária. Fatos
legendários existem, documentados em civilizações antigas. Os registros mais
antigos de Medicina são da Mesopotâmia e do Egito e, especicamente sobre
transplantes, da Índia antiga e da China, onde as escrituras estão repletas de
lendas dessa natureza.2
Os “vedas”, principais escrituras religiosas do hinduísmo, foram criados
há cerca de 1.200 anos a.C. e contêm 1.028 hinos devocionais e espirituais.
Essas escrituras descrevem vários deuses hindus, incluindo a grande trindade
de Brahma – o criador, Vishnu – o preservador e Mahesh – o destruidor. Tais
textos tratam de transplantes.3
2 BHANDARI, M.; TEWARI, A. Is transplantation only 100 years old? British Journal of
Urolog y, v. 79, Issue 4, p. 495-498, 19 Nov. 1996.
3 A lenda de Ganesha é talvez a mais popular e bem documentada acerca de xenotransplante
(de animal para homem) mítico indiano. Parvati, esposa de Siva, criou Vighneshawara
(nome de Ganesha antes do transplante) para agir como seu guarda el, junto à porta de
seus aposentos, a m de evitar visitas inoportunas de seu marido. Em determinado dia,
enquanto Parvati tomava banho, Ganesha se posicionava junto ao seu quarto, detido em suas
ocupações. Siva veio visitar a esposa, junto com amigos. O guardião não os deixou entrar.
Parvati, que possuía poderes divinos, sentiu seu orgulho ferido e deu a Ganesha sua força e
armas na luta contra Siva e seus aliados. Vishnu reconheceu que Ganesha seria invencível
e aconselhou Siva a usar sua magia para matá-lo. Enquanto a batalha se desenrolava, Siva
rastejou maliciosamente por detrás e cortou a cabeça de Ganesha. Ao saber do ocorrido,
Parvati, furiosa, decidiu destruir o universo. Siva enviou Narada como mediador e Parvati
concordou em abortar seu plano, somente se lhe trouxessem Ganesha de volta à vida, e lhe
conferissem divindade, o que foi aceito por Siva. O corpo do guardião foi limpo e cuidado,
mas não podiam achar-lhe a cabeça. Siva ordenou que trouxessem a cabeça do primeiro
ser vivente que encontrassem. Seus assistentes encontraram um elefante, dormindo com
a cabeça voltada para o norte, o que, na religião hindu representa uma ofensa, porque, de
acordo com a tradição, tal circunstância faz com que o pólo norte desequilibre a paz do
universo. Removida a cabeça do animal, Brahma, Vishnu e Siva conjugaram seus poderes
para xar a cabeça do elefante ao tronco decapitado de Ganesha, devolvendo vida ao corpo
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