Transexualidade

AutorMaria De Fátima Freire De Sá/Bruno Torquato De Oliveira Naves
Ocupação do AutorDoutora em Direito pela UFMG e Mestre em Direito pela PUC Minas/Doutor e Mestre em Direito Privado pela PUC Minas
Páginas311-343
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TRANSEXUALIDADE1
Ó Adão, não te demos nem um lugar determinado, nem um
aspecto que te seja próprio, nem tarefa alguma especíca, a
m de que obtenhas e possuas aquele lugar, aquele aspecto,
aquela tarefa que tu seguramente desejares, tudo segundo
o teu parecer e a tua decisão. A natureza bem denida dos
outros seres é refreada por leis por nós prescritas. Tu, pelo
contrário, não constrangido por nenhuma limitação, de-
terminá-la-as para ti, segundo o teu arbítrio, a cujo poder
te entreguei.2
1. A “INDEPENDÊNCIA” DO HOMEM
Como aspectos da pessoa humana, os direitos da personalidade não po-
dem ser analisados apenas como direitos subjetivos, mas principalmente como
possibilidade de vir a ser; a determinação mais íntima e segura da identida-
de do ser humano. Os direitos da personalidade são situações subjetivas que
protegem o devir humano; protegem a potencialidade de se constituir pessoa
dentro de um ambiente saudável.
1 Agradecemos a pesquisa e a contribuição de Juliana Mendonça Alvarenga, de Marcelo M.
Couto e de Iara Antunes de Souza para a atualização desse capítulo.
2 PICO DELLA MIRANDOLA, Giovanni. Discurso sobre a dignidade do homem.
Lisboa: Edições 70, 2008, p. 51-53.
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MARIA DE FÁTIMA FREIRE DE SÁ | BRUNO TORQUATO DE OLIVEIRA NAVES
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No entanto, como determinar sob quais condições o ser humano encon-
tra meios propícios para desenvolver sua personalidade? Qual o modelo a se
seguir?
Interessante pensar que a Modernidade foi responsável pela superação do
modelo monolítico predeterminado pela Religião ou pelo Estado.
Como nos relata Richard Tarnas,3 a Modernidade modica a noção de su-
jeito, ao libertar o homem da heteronomia religiosa. O comportamento hu-
mano, especialmente quanto ao modelo sexual adotado, era determinado pelo
temor da condenação eterna. O pecado cercava o homem e sua personalidade
não devia ser construída com a sua participação.
A consciência de si mesmo e sua relação com o outro, permitiu ao homem
buscar na ciência a “autoridade intelectual proeminente, sendo agora denido-
ra, juiz e guardiã da visão cultural do mundo.4
A independência do homem em relação ao pecado, às estruturas políticas
e às superstições medievais transformaram a personalidade.
Uma delidade psicológica que passava de Deus para o Homem, da depen-
dência para a independência, do outro mundo para este, do transcendental
para o empírico, de mito e crença para a Razão e fato, das universalidades
para as particularidades, de um Cosmo estático determinado pelo sobrenatu-
ral para um Cosmo em evolução determinado pela Natureza e de uma Huma-
nidade decadente para uma progressiva.5
A personalidade contemporânea não contempla modelos e reconhece que
o único meio de se alcançar uma justiça tão mutável quanto seu próprio desti-
natário é reconhecendo-lhe o poder de autodeterminar interesses.
Podemos armar que, em princípio, a característica denidora da Moder-
nidade foi responsável por sua crise. A crença na razão queria transformar a
verdade metafísica em certeza cientíca, quase matemática. A ordenação do
3 TARNAS, Richard. A epopéia do pensamento ocidental: para compreender as idéias que
moldaram nossa visão de mundo. 5. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
4 TARNAS, Richard. A epopéia do pensamento ocidental: para compreender as idéias que
moldaram nossa visão de mundo. 5. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002, p. 309.
5 TARNAS, Richard. A epopéia do pensamento ocidental: para compreender as idéias que
moldaram nossa visão de mundo. 5. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002, p. 343.
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BIOÉTICA E BIODIREITO
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caos era o interesse principal, na qual a nomeação e a classicação seriam po-
tentes instrumentos.
No Direito também convivemos com essa necessidade ordenadora. Os có-
digos ordenavam, classicavam e conceituavam institutos jurídicos. Todavia,
quanto mais precisas são as denições, mais elas segregam e mais se tem a
conceituar. A busca pela verdade acabou por gerar o retorno da incerteza.
A ambivalência é um subproduto do trabalho de classicação e convida a um
maior esforço classicatório. Embora nascida do impulso de nomear/classi-
car, a ambivalência só pode ser combatida com uma nomeação ainda mais
exata e classes denidas de modo mais preciso ainda: isto é, com operações
tais que farão demandas ainda mais exigentes (contrafactuais) à descontinui-
dade e transparência do mundo e assim darão ainda mais lugar à ambigüida-
de.6
Dessa forma, ciência e ambivalência estão em pontos contrários e ao mes-
mo tempo muito próximos. Embora procure afastar o caos da ambivalência,
precisando conceitos e classicações, a verdade cartesiana dos primórdios da
Modernidade demonstrou que a única saída para o Direito era reconhecer a
individualidade e o indivíduo como seu agente construtor.
Considerada como “aquilo que nos permite denir o que é e o que não é
importante para nós”,7 a identidade permite que as potencialidades do indiví-
duo concretizem-se segundo seus próprios interesses e convicções.
Enm, reconhecemos a pluralidade do homem e o projeto inacabado de
construção de sua personalidade, dependente da autonomia como elemento
determinante da dignidade do ser humano.
Nesse contexto de precariedade da personalidade do homem (pós) moder-
no, é que propomos o estudo da situação jurídica dos transexuais.8
6 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Tradução de Marcus Penchel. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 1999, p. 11.
7 TAYLOR, Charles. As fontes do self: a construção da identidade moderna. São Paulo: Loyola,
1997, p. 47.
8 Sobre esse tema, ver abordagem da Lei argentina n. 26.743/2012 em: SÁ, Maria de Fátima
Freire de; MOUREIRA, Diogo Luna. O direito da pessoa humana à identidade de gênero
autoconstruída: mais uma possibilidade da pessoalidade. In: SÁ, Maria de Fátima Freire
de; MOUREIRA, Diogo Luna; ALMEIDA, Renata Barbosa de. Direito privado: revisitações.
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