Execução de ações coletivas

AutorHumberto theodoro júnior
Ocupação do Autordesembargador aposentado do tribunal de justiça de minas gerais. professor titular aposentado da faculdade de direito da ufmg. doutor em direito
Páginas1029-1039

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669. Histórico

Caracterizam-se as ações coletivas pela circunstância de atuar o autor não em defesa de um direito próprio, mas em busca de uma tutela que beneficia toda a comunidade ou grandes grupos, aos quais compete realmente a titularidade do direito material invocado.

O surgimento das ações coletivas é fruto da superação, no plano jurídico-institucional, do individualismo exacerbado pela concepção liberal que o Iluminismo e as grandes revoluções do final do século XVIII impuseram à civilização ocidental. O século XX descobriu que a ordem jurídica não podia continuar disciplinando a vida em sociedade à luz de considerações que focalizassem o indivíduo solitário e isolado, com capacidade para decidir soberanamente seu destino. A imagem que se passou a ter do sujeito de direito, em sua fundamentalidade, é a "da pessoa humana dotada de um valor próprio, mas inserido por vínculos e compromissos, na comunidade em que vive".1Essa visão destacou não apenas o "homem social", pois o próprio "grupo" impôs-se à valoração jurídica. Primeiro realçou-se o papel conferido a associações, sindicatos e outros organismos para ensejar o melhor exercício das franquias individuais e coletivas. Depois, reconheceram-se direitos subjetivos que, a par dos individuais, eram atribuídos diretamente ao grupo e, que, por isso mesmo, teriam de ser qualificados como coletivos, e, como tais, haveriam de ser exercidos e protegidos.

Por meio da ação popular concebeu-se, entre nós, o primeiro procedimento judicial de tutela de direitos coletivos. Por seu intermédio qualquer cidadão foi legitimado a pleitear em juízo contra atos ilícitos de autoridade pública, lesivos ao patrimônio público (Constituição de 1934, art. 113, nº 38).

A ampliação da tutela jurisdicional, para introduzir as autênticas ações coletivas, ou de grupo, no direito processual pátrio, ocorreu com a instituição da ação civil pública por meio da Lei Complementar nº 40, de 13.12.81, e Lei nº 7.347, de 27.07.85. A partir de então, o campo de manifestação dos direitos coletivos ou difusos deixou de ser apenas o de atuação dos agentes do Poder Público, como se passava ao tempo da ação

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popular. A defesa coletiva tornou-se possível contra quem quer que cometesse ofensa aos interesses coletivos ou difusos, fosse um administrador público ou algum particular.

670. Direito material coletivo e direito processual coletivo

O fato de a Lei nº 7.347/85 ter instituído uma ação especial para defesa dos direitos coletivos ou difusos não quer dizer que todos os interesses de grupo automaticamente passaram a contar com a tutela jurisdicional da ação civil pública.

Tanto como os interesses individuais, os interesses difusos para alcançarem, in concreto, a tutela processual, têm de atingir a categoria de direito previsto em norma de natureza material. A lei processual não é, por si, fonte de direitos subjetivos materiais, mas apenas instrumento de proteção e realização daqueles previstos pelas normas de natureza material.

Tratando das ações coletivas, ensina Cappelletti que o que se protege, nesse novo tipo de processo civil, é "o interesse difuso, na medida em que a lei substantiva o transforma em direito", direito que "não é privado, nem público; nem completamente privado, nem completamente público."2Segundo o mestre italiano, a evolução da tutela jurídica dos interesses difusos, tal como se dá, aliás, com os interesses individuais, envolve dois momentos sucessivos, encadeados de maneira lógica e necessária:

a) num primeiro estágio, normas constitucionais e infraconstitucionais tomam o rumo de defender os interesses difusos (ou, mais precisamente, alguns deles) e, assim, surgem "leis de direito substancial que protegem o consumidor, o ambiente, as minorias raciais, civil rights, direitos civis etc.";3b) no segundo estágio, sente-se a necessidade de alterar o sistema tradicional de tutela processual, criando-se ações adequadas aos interesses difusos transformados em direitos pelas leis materiais.4Nessa perspectiva, a Lei nº 7.347/85 insere-se na preocupação de proteger processualmente os direitos difusos ou coletivos já definidos entre nós, ou que venham a ser definidos, por outros diplomas legais, tanto ordinários como constitucionais. Vale, portanto, a advertência do STF: trata-se de lei, em sua quase totalidade, de conteúdo normativo de natureza processual.5Daí que a definição e caracterização dos direitos difusos ou coletivos não serão encontrados na Lei da Ação Civil Pública, mas terão de ser buscadas em outras fontes junto ao direito material.6

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671. Configuração dos direitos materiais tuteláveis pela ação civil pública

A Lei nº 7.347/85, como já se afirmou, limitou-se a disciplinar processualmente a ação civil pública que, segundo sua previsão, seria genericamente aplicável nas causas sobre responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados (i) ao meio ambiente, (ii) ao consumidor, (iii) a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico, paisagístico (iv) a qualquer outro interesse difuso ou coletivo, (v) por infração da ordem econômica; (vi) à ordem urbanística, (vii) à honra e à dignidade de grupos raciais, étnicos ou religiosos, (viii) ao patrimônio público e social (art. 1º).

No plano material há abundante legislação acerca do meio ambiente, do patrimônio histórico e cultural, das reservas florestais, paisagísticas, e da repressão às ofensas à ordem econômica popular.

A mais importante inovação legislativa, a propósito das matérias tratáveis nas ações coletivas, veio por meio do Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078, de 11.09.1990), já que, além de definir materialmente os direitos coletivos ou difusos nascidos das relações de consumo, incluiu entre os casos de ação coletiva os "direitos individuais homogêneos" (art. 81, parág. único, III).

Com isto, a partir da lei consumerista, criou-se, na verdade, uma nova ação coletiva, uma vez que na estrutura legal da ação civil pública não figuram senão os direitos difusos ou coletivos, que obviamente não compreendem direitos individuais, ainda que homogêneos7.

672. Ações coletivas possíveis após o CDC

I - Ações coletivas

Diante da inovação criada pelo Código de Defesa do Consumidor, o horizonte das ações coletivas ampliou-se para além dos limites estabelecidos pela Lei da Ação Civil Pública (Lei nº 7.347/85). Desde então, três são os tipos de ações coletivas existentes entre nós:8a) as relativas a direitos coletivos;

b) as pertinentes a direitos difusos; e

c) as referentes a direitos individuais homogêneos.

Os direitos coletivos e difusos, embora definidos separadamente pelo CDC, têm em comum sua transindividualidade e indivisibilidade. Pertencem ao grupo e não podem ser exercidos e defendidos senão pelo grupo ou em seu benefício.

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II - Direitos individuais homogêneos

Quando a lei consumerista cuida da proteção coletiva dos direitos individuais homogêneos não está atribuindo a eles a categoria de direitos coletivos ou difusos. Apenas, por política processual lhes confere, no âmbito das relações de consumo, um remédio que possibilite, por economia processual, tratá-las cumulativamente num só processo. Essa ação especial, portanto, não pode ser confundida com a ação civil pública da Lei nº 7.347/85, que tutela os verdadeiros direitos coletivos ou difusos, inclusive os dessa categoria originados de relações de consumo. É equivocado tanto tratar os direitos individuais homogêneos como espécie de direitos coletivos ou difusos como pretender que a ação civil pública seja destinada a resolver os conflitos em torno dos direitos individuais homogêneos.

Adverte Teori Albino Zavascki que "o legislador brasileiro criou mecanismos próprios para defesa dos chamados ‘direitos individuais homogêneos’, distintos e essencialmente inconfundíveis, dos que se prestam à defesa dos direitos difusos e coletivos".9Assim é que o Título III do Código, que trata "da defesa do consumidor10em

juízo", estabelece neste tópico distinções importantes entre a configuração processual da defesa dos direitos coletivos e difusos dos consumidores e da defesa dos seus direitos individuais, traçando-lhes regimes próprios e diferenciados.11III - Direitos difusos e coletivos

No sistema jurídico pátrio, a tutela dos interesses difusos e coletivos no âmbito das relações de consumo se faz por instrumento próprio, qual seja, a ação civil pública (Lei nº 7.347/85), mormente quando promovida pelo Ministério Público. Trata-se de mecanismo moldado à natureza dos direitos e interesses a que se destina tutelar - ou seja, os difusos e coletivos.

Diante da destinação expressa que lhe foi dada pelo legislador e pelas próprias características com que foi concebida, a ação civil pública é talhada para defesa de direitos coletivos lato sensu, e "não para defender coletivamente direitos subjetivos individuais, que têm, para isso, seus próprios mecanismos processuais".12Logo, vedada é a utilização do instrumento específico de defesa dos interesses e direitos difusos e coletivos para veicular pretensão destinada à tutela de direitos individuais homogêneos.

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À proteção desta categoria de direitos destinou o legislador outros mecanismos de defesa coletiva, a saber: o Mandado de Segurança Coletivo (art. 5º, LXX, da CF) e a Ação Civil Coletiva, prevista nos arts. 91 a 100 do Código de Proteção e Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90).13No âmbito da proteção aos direitos coletivos de consumidores, há regras específicas e indisponíveis, elencadas em capítulo próprio do Código do Consumidor. E só em relação a elas se poderá cogitar de uso da ação civil pública da Lei nº 7.347/85.

A legitimação extraordinária concedida às pessoas do art. 82 do Código do...

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