A influência da formação do perito médico na efetivação da perícia biopsicossocial

AutorLuciana Adélia Sottili
Páginas82-109

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Luciana Adélia Sottili 79

1. Introdução

Em 2001, a Organização Mundial da Saúde lançou um novo paradigma, a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF) que deveria ser utilizada em conjunto com a Classificação Internacional de Doenças.

A CIF traz o conceito de que deficiência e incapacidade são dois conceitos diferentes que nem sempre andam juntos e propõe um novo formato de avaliação que observe os conceitos multidisciplinares que compõem a saúde do indivíduo. Não obstante, passados quase vinte anos, pouco se ouve falar sobre a aplicação da CIF nas avaliações médicas.

É comum ouvir relatos de trabalhadores e beneficiários do BPC acerca da negativa de suas pretensões quando buscam o INSS para concessão de um benefício a que fazem jus. A narrativa corrente retrata um perito médico desumanizado, quase que um autómato que, sem dar ouvidos às queixas do paciente, analisa-o e carimba sua pretensão de acordo com suas convicções.

Alguns pesquisadores indicam que o grande contributo a esta perícia médica reducio-nista está relacionado à formação que os futuros médicos, em especial os peritos, encontram nas faculdades de medicina brasileiras.

Identificar como a formação do perito médico interfere em sua análise perícial é o objetivo deste artigo. Para tanto, a presente pesquisa foi dividida em três blocos.

No primeiro bloco, será abordada a perícia biopsicossocial e em breves linhas se verificará a evolução do conceito sobre saúde até a construção do conceito da biopsicossocialidade, utilizando-se como referenciais teóricos principais a CIF/2001 e o Estatuto do Deficiente. No segundo bloco, será abordada a perícia médica previdenciária e como ela se processa em relação ao períciando, utilizando-se como referenciais teóricos principais o livro "Perícia Biopsicossocial: perspectivas de um novo modelo" de José Ricardo Caetano Costa e os artigos "Benefício de Prestação Continuada e perícia médica previdenciária: limitações do processo" de Miriam Cláudia Spada Bim e Neide Tiemi Murofose e "Ato médico: perda da autoridade, poder e resistência" de Marilene Barros de Melo e Luiz Carlos Brant. No terceiro bloco, será apresentada uma pesquisa quantitativa sobre a formação humanista nas faculdades de medicina brasileiras, utilizando-se para isto ferramentas de análise das disciplinas que compõem a formação dos futuros períciandos.

A partir destes elementos, buscará se compreender como a formação dos médicos se traduz nas abordagens percebidas pelos pacientes, em especial os períciandos.

2. A construção da perícia biopsicossocial

A construção do entendimento sobre a perícia biopsicossocial perpassa a evolução dos conceitos sobre saúde, não sendo possível dissociar a evolução da compreensão sobre a saúde e de seu direito sobre ela por se encontrar a matéria em um ramo multidisciplinar.

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Em 1949, a Organização Mundial da Saúde declarou que a concepção de saúde deixava de ser apenas a ausência de doenças e passou a integrar o conceito de um completo bem-estar físico, mental e social. Esta nova visão ampliada sobre o conceito de saúde desencadeou um efeito cascata a nível mundial em que as nações passaram a rever o conceito de saúde e de respeito à vida, destacando as questões sociais e ambientais (BRAUNER; FURLAN, 2013).

Esta primeira mudança trouxe o entendimento de que saúde não era mais apenas uma questão de ausência de doença, mas que implicava uma dimensão psíquica, social e comportamental, traduzindo-se em uma concepção socioambiental de saúde. Este conceito serviu de inspiração ao legislador que incorporou à Carta Magna de 1988 o artigo 196 que assim declara:

Art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e económicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

A partir de então, o Estado passou a buscar a implementação da determinação constitucional, sem, contudo, atingir integralmente os objetivos firmados na normativa, levando-se em conta o grande número da população que ainda carece de acesso ao sistema sanitário.

Em 2001, a Organização Mundial da Saúde (OMS) lançou a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde (CIF), com base na revisão e aprimoramento da Classificação Internacional de Deficiências, Incapacidades e Desvantagens (ICIDH) publicada em caráter experimental em 1980. Trata-se de um modelo de classificação que deve ser utilizado complementarmente com o CID-10, como observa a OMS na introdução da CIF (OMS, 2004).

A CIF foi construída a partir da análise de que duas pessoas com a mesma doença podem apresentar funcionalidades com diferentes níveis e duas pessoas com a mesma funcionalidade podem não ter a mesma doença. Ela se baseia no que o indivíduo pode ou não fazer em sua vida diária e trabalha com a abordagem biopsicossocial para avaliar os diferentes níveis que possam se apresentar no caso concreto.

Segundo Farias e Buchalla, (2005, p. 187);

O modelo da CIF substitui o enfoque negativo da deficiência e da incapacidade por uma perspectiva positiva, considerando as atividades que um indivíduo que apresenta alterações de função e/ou da estrutura do corpo pode desempenhar, assim como sua participação social. A funcionalidade e a incapacidade dos indivíduos são determinadas pelo contexto ambiental onde as pessoas vivem. A CIF representa uma mudança de paradigma para se pensar e trabalhar a deficiência e a incapacidade, constituindo um instrumento importante para avaliação das condições de vida e para a promoção de políticas de inclusão social.

A CIF é classificada em duas partes: a primeira parte consiste nas funções e estrutura do corpo, atividades e participação; e a segunda parte consiste dos fatores ambientais e pessoais. As "Funções do corpo" são "as funções fisiológicas dos sistemas orgânicos (incluindo as funções psicológicas) ", as "Estruturas do corpo" são "partes anatómicas do corpo, tais como, órgãos, membros e seus componentes", "Atividade" é "a execução de uma tarefa ou ação por um indivíduo", a "Participação" é o "envolvimento de um indivíduo numa situação da vida real" e os "Fatores Ambientais" se referem ao "ambiente físico, social e atitudinal em que as pessoas vivem e conduzem a sua vida" (OMS, 2004, p. 13).

A CIF introduziu um novo paradigma para repensar a deficiência e a incapacidade não como consequências de uma situação de saúde ou doença, mas como relacionadas ao meio ambiente físico e social, diferenças entre culturas e atitudes em relação à deficiência e disponibilidade e acesso de serviços e legislação. Segundo o documento:

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A CIF baseia-se numa integração desses dois modelos opostos. Para se obter a integração das várias perspectivas de funcionalidade é utilizada uma abordagem "biopsicossocial". Assim, a CIF tenta chegar a uma síntese que ofereça uma visão coerente das diferentes perspectivas de saúde: biológica, individual e social. (OMS, 2004, p. 22.) (grifo meu)

Para corroborar este novo paradigma, a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da Organização das Nações Unidas (ONU) e seu Protocolo Facultativo foram assinados na cidade de Nova Iorque, em 30 de março de 2007. Esta Convenção foi ratificada pelo Brasil pelo Decreto Legislativo n. 186, de 9 de julho de 2008, e, posteriormente, promulgada pelo Decreto n. 6.949, de 25 de agosto de 2009.

A Convenção trouxe maiores avanços no sentido de comprometer os Estados Partes signatários a cumprirem com uma série de políticas que visem a garantia dos direitos da pessoa com deficiência considerando entre outros motivos:

[...] e) Reconhecendo que a deficiência é um conceito em evolução e que a deficiência resulta da interação entre pessoas com deficiência e as barreiras devidas às atitudes e ao ambiente que impedem a plena e efetiva participação dessas pessoas na sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas (preâmbulo). (grifo meu)

[...]

Art. 26. [...]

  1. Os Estados Partes tomarão medidas efetivas e apropriadas, inclusive mediante apoio dos pares, para possibilitar que as pessoas com deficiência conquistem e conservem o máximo de autonomia e plena capacidade física, mental, social e profissional, bem como plena inclusão e participação em todos os aspectos da vida. Para tanto, os Estados Partes organizarão, fortalecerão e ampliarão serviços e programas completos de habilitação e reabilitação, particularmente nas áreas de saúde, emprego, educação e serviços sociais, de modo que esses serviços e programas:

  1. Comecem no estágio mais precoce possível sejam baseados em avaliação multidisciplinar das necessidades e pontos fortes de cada pessoa ; (grifo meu)

O texto demonstra que a Convenção de Nova Iorque trouxe um novo paradigma sobre o deficiente e como a sua participação plena e efetiva na sociedade pode ser melindrada quando sua deficiência interage com as mais variadas barreiras. Para melhor agir na reabilitação do deficiente, segundo a normativa, deve haver uma avaliação multidisciplinar que se baseie em sua realidade e condições.

Entre as diretrizes propostas na...

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