Intertextualidade entre subsistemas jurídicos: a 'novilíngua' no direito tributário brasileiro

AutorPriscila de Souza e Fernando Gomes Favacho
Ocupação do AutorMestre em Direito Tributário pela PUC/SP e coordenadora do IBET Instituto Brasileiro de Estudos Tributários/Mestre e doutorando em Direito Tributário, professor do IBET e da PUCSP-COGEAE e professor convidado da UFPA
Páginas1033-1071
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ΙΝΤΕΡΤΕΞΤΥΑΛΙ∆Α∆Ε ΕΝΤΡΕ
ΣΥΒΣΙΣΤΕΜΑΣ ϑΥΡ⊆∆ΙΧΟΣ: Α
ΝΟςΙΛ⊆ΝΓΥΑ ΝΟ ∆ΙΡΕΙΤΟ
ΤΡΙΒΥΤℑΡΙΟ ΒΡΑΣΙΛΕΙΡΟ
Priscila de Souza1
Fernando Gomes Favacho2
Quando as palavras perdem seu significado,
as pessoas perdem sua liberdade.
Confúcio
O sofista e o demagogo florescem numa
atmosfera de definições vagas e imprecisas.
Irving Babbitt
INTRODUÇÃO: O DUPLIPENSAR
A força inexorável dos valores faz com que não haja juízo
1. Mestre em Direito Tributário pela PUC/SP e coordenadora do IBET
Instituto Brasileiro de Estudos Tributários.
2. Mestre e doutorando em Direito Tributário, professor do IBET e da
PUCSP-COGEAE e professor convidado da UFPA.
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TRIBUTAÇÃO: DEMOCRACIA E LIBERDADE
neutro. Fingir a neutralidade, aliás, é a melhor forma de esconder
as ideias basilares da própria ideologia. “Juízo de valor” não é só
uma redundância, mas também um desrespeito intelectual. O
juízo “de valor” está em usar um termo que agrada os estadistas
(como “contribuinte”) ou os liberais (como “pagador de impos-
tos”). São palavras diferentes para o mesmo sujeito passivo, mas
que, pelo peso dos valores, mudam nossa visão da realidade. O
poder também usa a mesma palavra para moldar realidades
divergentes: a palavra “democracia”, tal como “república”, cos-
tuma estar no nome oficial das ditaduras pelo mundo.
Na ficção política 19843, George Orwell chama de “du-
plipensar” a capacidade de guardar simultaneamente na ca-
beça duas crenças contraditórias e aceitá-las a ambas. Ao
acusar as autoridades de tentar destruir o pensamento inde-
pendente, afirma que uma linguagem com regras aceitas e
mutuamente compreendidas é condição indispensável a uma
democracia aberta.
Ainda que do direito não se exija coincidir com a rea-
lidade, mas sim incidir, seus sobreprincípios – segurança e
justiça – não serão atingidos sem que haja comunicação
entre os utentes, o que exige previsibilidade das palavras,
nem se houver distorção para além dos limites que o próprio
sistema impõe.
Ao que parece, o valor que norteia a arrecadação, no
Brasil, faz existir um conceito para cada interesse da máquina
estatal. Para cobrar IPTU, uma mera posse precária passa a ser
propriedade. Para que não se exija a devolução do dinheiro
desviado dos fins específicos que motivaram certa cobrança,
dizemos que a palavra “tributo” no direito tributário tem um
sentido diferente no direito financeiro. Receita passa a se equi-
parar a faturamento. E, em uma irônica liquidez da própria
3. Tradução de Heloisa Jahn e Alexandre Hubner. São Paulo: Companhia
das Letras, 2009.
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linguagem, “água” pode ser insumo ou não a depender de seu
contexto! É o início da distopia orwelliana?
Este trabalho trata sobre a definição de conceitos jurídicos,
e como se estabelecem critérios para o uso dos conceitos quan-
do ocorrem conflitos entre conceitos. Apresenta o estudo da
“intertextualidade” como um facilitador da interpretação legal,
estabelecendo os limites textuais e contextuais do discurso nor-
mativo na resolução de conflitos. Postas essas premissas, apli-
camos o estudo da intertextualidade em conhecidas controvér-
sias sobre definições de três conceitos do direito tributário
brasileiro, quais sejam, “receita”, “tributo” e “insumos”. Este
trabalho é motivado pela busca de limites contextuais ao poder
de impor, simultaneamente, sentidos contrários e até mesmo
contraditórios, tal como o “duplipensar” de George Orwell.
1. DEFINIÇÃO DE CONCEITOS JURÍDICOS
1.1. A verdade não é absoluta, mas dependente do contexto
O conceito de verdade como correspondência entre o
conhecimento e a coisa remonta aos antigos pensadores gregos.
Acreditavam que existia uma “verdade universal”, em contra-
posição à verdade aparente, à ilusão. Como se acreditava em
um ser ideal que independia do utente, verdade absoluta era
uma redundância aos paradigmas da época. Para uma senten-
ça ser verdadeira, deveria corresponder à verdade. “Verdadei-
ro é o discurso que diz as coisas como são; falso é aquele que
diz como não são”, discorria Platão.4
Com o advento da filosofia da linguagem, encontramos
uma séria mudança de pensamento.5 A verdade passa a ser
4. Nicola Abbagnano, Dicionário de Filosofia, 5ª ed. rev. e ampl. São Paulo:
Martins Fontes, 2007, p. 1183.
5. Dardo Scavino, La filosofia actual: pensar sin certezas. Santiago del Estero:
Paidós Postales, 1999, p. 90.

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