Mães que devoram: um ensaio sobre a perda de uma chance no âmbito dos vínculos materno-filiais

AutorSilmara Domingues Araújo Amarilla
Páginas173-189
MÃES QUE DEVORAM: UM ENSAIO SOBRE A
PERDA DE UMA CHANCE NO ÂMBITO DOS
VÍNCULOS MATERNO-FILIAIS
Silmara Domingues Araújo Amarilla
Doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Mestre
em Direito pela Faculdade Autônoma de Direito – FADISP. Professora da Escola Superior
da Magistratura de Mato Grosso do Sul – ESMAGIS. Membro do Instituto Brasileiro de
Direito de Família – IBDFAM e do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade
Civil – IBERC. Advogada.
Te recolher pra sempre
À escuridão do ventre, curuminha
De onde não deverias
Nunca ter saído
Chico Buarque. Uma canção desnaturada
Sumário: 1. Introdução. 2. A construção histórica da maternidade e sua repercussão na fundação
dos mitos acerca do amor materno e da habilidade instintiva no desempenho da parentalidade. 3.
As mães devoradoras e sua atuação junto à prole. 4. A responsabilidade civil no âmbito do Direito
de Família. 5. A “perda de uma chance” como dano indenizável no contexto dos vínculos mater-
no-liais. 6. Conclusão. 7. Referências.
1. INTRODUÇÃO
A mãe é o indivíduo que assegura vida à prole, concebendo, gestando, parindo e
nutrindo seus descendentes, bem como lhes assegurando amor e cuidados indispensáveis
ao seu crescimento. A assertiva que inaugura este trabalho – saturada de uma visão obla-
tiva, etérea e mistif‌icada da maternidade – encerra propositalmente fantasias imemoriais.
A maternidade não consiste em consectário lógico de qualquer fator biológico
relacionado à perinatalidade1; não def‌lagra magicamente na mulher expertise quanto à
atenção infantil, tampouco imuniza a matriz da dor, ambiguidade, medo, rejeição, de-
bilidade e maldade – aqui compreendida enquanto nocividade. Sim, existem mães que
fazem mal, ou, mais precisamente, que são nocivas aos seus f‌ilhos e f‌ilhas, comumente
agindo de modo silencioso e sem deixar vestígios perceptíveis aos olhos – o que, aliás,
denota o mais elevado grau de sof‌isticação de um algoz.
O fato é que, através dos séculos, a reprodução e a maternidade foram vislumbradas
como desdobramentos de um mesmo fenômeno; um continuum associado à biologia
1. Toma-se por perinatalidade o período que contempla a concepção, gestação, parto e puerpério, bem como o
conjunto de mudanças e vivências orgânicas experimentadas pela mulher ao longo deste processo.
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da mulher; algo inerente à condição feminina e seu corpo físico e psíquico2. Também
restou historicamente consolidada a suposição segundo a qual a mulher estaria instin-
tivamente predisposta a decodif‌icar e atender as demandas da criança, seja em virtude
de suas próprias reminiscências (processo identif‌icatório), seja em razão da experiência
gestacional vivenciada. Ou seja, estaria a mulher naturalmente inclinada a responder aos
reclamos físicos e emocionais da prole, exercendo instintivamente um set de cuidados
af‌iançadores do vir-a-ser dessa cria no mundo.
Talvez a primeira falácia que deva ser desconstruída é aquela segundo a qual o
conceito da boa mãe é constante ou homogêneo. O fato é que a construção histórica
da maternidade e a funcionalização (subjugação) do corpo feminino a determinados
escopos sociais interagem com os excessos e déf‌icits ponderados no campo do abuso do
poder familiar, fazendo oscilar a compreensão do que efetivamente conf‌igura uma mãe
suf‌icientemente boa, insuf‌iciente ou má.
Quem seria, af‌inal, essa Mãe Devoradora, que abusa emocionalmente dos f‌ilhos sob
o pretexto de amá-los em excesso, malogrando com isso a construção de sua identidade e
autonomia? Quais seriam as implicações desse desvirtuamento do cuidado parental – aqui
debulhado sob a perspectiva materna – na formação e consolidação da prole objeto de
tamanha devo(ra)ção? Que chances de desenvolvimento biopsíquico e social (proveito)
estariam sendo espoliadas por essa mãe ou que perdas por ela poderiam ser evitadas no
desempenho suf‌icientemente bom da função parental?
A teoria da perda de uma chance, comumente cogitada para recompor a supressão
de uma oportunidade de proveito futuro, por força de conduta ilícita comissiva ou omis-
siva praticada por alguém, merece enfrentamento também sob o viés dos bens jurídicos
de ordem existencial, psíquica e moral, encontrando nas relações familiares ambiente
fecundo. Af‌inal, sendo a família o locus primário para a construção da identidade, per-
sonalidade e autonomia de crianças e adolescentes, encontrando-se estes – em razão da
vulnerabilidade que lhes é inata – sujeitos ao cuidado alheio para o bem e para o mal, falar
sobre chances e oportunidades perdidas é crucial no quadro teórico da responsabilidade
civil contemporânea, sendo exatamente esta a jornada a que se propõe.
Busca-se, portanto, a investigação crítico-ref‌lexiva do conceito da perda de uma
chance sob o espectro da privação, desmantelamento ou falha da função materna e sua
repercussão na construção da personalidade e autonomia infante.
2. Antecipa-se aqui uma proposição fundamental para o desdobramento do estudo: a rejeição da ideia do desejo femi-
nino pela maternidade como algo natural, refutando-se igualmente o que se convencionou denominar de instinto
materno. Apropria-se, por outro lado, do conceito de maternidade como um fenômeno da ordem da singularidade
(ou seja, concernente a cada sujeito) e enquanto constructo gradualmente elaborado a partir dos investimentos
afetivos aportados à prole. Divorcia-se, portanto, da concepção da maternidade enquanto instrumento af‌iançador
da feminilidade e de uma visão simbiótica do tornar-se mulher/tornar-se mãe. Pondera acerca do tema Silvia Lobo:
“Esse modelo valida a suposição generalizada de uma vontade a priori, indiscutível, de ser mãe, sendo a consciên-
cia da mulher forjada com a maternidade, seja qual for o contexto em que se dê a relação com os f‌ilhos. Contudo,
nem sempre é assim que se passa, [...]. A suposição generalizada dessa vontade, a priori indiscutível, mascara as
diversas atitudes que têm as mulheres em relação a sua condição de mães; não questiona a vontade interior e não
verif‌ica a efetividade da completude anunciada após o nascimento dos f‌ilhos, quando passariam a usufruir do
sentimento de pertencimento, de propriedade sobre algo valioso que permitiria auferir respeito, valoração e poder
sobre o mundo, sobre os homens e sobre si”. LOBO, Silvia Mães que fazem mal. São Paulo: Pasavento, 2018, p. 18.
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