Responsabilidade civil e abandono afetivo inverso: o perfil do dever de cuidado em face das pessoas idosas

AutorVitor Almeida
Páginas191-208
RESPONSABILIDADE CIVIL E ABANDONO
AFETIVO INVERSO: O PERFIL DO DEVER DE
CUIDADO EM FACE DAS PESSOAS IDOSAS
Vitor Almeida
Doutor e Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ). Discente do Estágio Pós-Doutoral do Programa de Pós-Graduação em Direito
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGD-UERJ). Professor Adjunto de
Direito Civil da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (ITR/UFRRJ). Professor
do Departamento de Direito da PUC- Rio. Advogado.
“mas ele era um velho, e para os velhos tudo era devagar,
a ferida tardava para curar”
João Anzanello Carrascoza1
Sumário: 1. Introdução: um mesmo remédio para situações distintas. 2. A tutela constitucional da
pessoa idosa no direito brasileiro. 3. Cuidado e vulnerabilidade nas relações familiares. 4. O papel
do cuidado em relação às pessoas idosas, os mecanismos de combate e a responsabilidade civil:
alienação de pessoa idosa e abandono afetivo inverso. 5. Considerações nais. 6. Referências.
1. INTRODUÇÃO: UM MESMO REMÉDIO PARA SITUAÇÕES DISTINTAS
Não é de hoje que a responsabilidade civil tem assumido uma abrangência difícil
de delimitar com precisão seu escopo e sua função. Se, antes, bem acomodava os danos
de ordem patrimonial dentro da lógica reparatório-ressarcitória, atualmente, em chave
de leitura a partir do princípio da dignidade da pessoa humana, volta-se outrossim para
a compensação dos danos de natureza moral e alcança conf‌ins até pouco tempo atrás
desconhecidos dos domínios da matéria reparatória. Tradicionalmente, refratária à
responsabilidade civil como remédio hábil a dirimir os conf‌litos familiares, o campo do
direito de família assiste nos últimos anos a invasão de hipóteses de dever de indenizar
tanto nas relações de conjugalidade quanto nos vínculos paterno-f‌iliais2, o que descortina
uma crescente judicialização da vida familiar, que, antes, era restrita ao círculo doméstico.
Tal fenômeno de aproximação do campo indenizatório com o direito das famílias,
que parece irrefreável, é fruto, em parte, de uma família democrática, eudemonista e
1. CARRASCOZA, João Anzanello. Menina escrevendo com pai. Trilogia do Adeus. São Paulo: Alfaguara, 2017, p. 21.
2. “Assim, ‘dano moral’ e ‘direito de família’ são expressões que em princípio se excluiriam e cuja combinação esboça
um oxímoro, quase um paradoxo, a própria lança contra o próprio escudo, na metáfora do velho provérbio chi-
nês. [...] A responsabilidade civil entra no seio familiar, reconhecendo danos a serem ressarcidos por maridos às
esposas e vice-versa, por pais aos f‌ilhos, excepcionalmente até por avós aos netos, pessoas habituadas a se querer o
bem ou a se relacionar com afeto”. BODIN DE MORAES, Maria Celina. Danos morais em família? Conjugalidade,
parentalidade e responsabilidade civil. Na medida da pessoa humana: estudos de direito civil-constitucional. Rio
de Janeiro: Renovar, 2010, p. 425.
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solidarista, cuja vocação é a busca pelo livre desenvolvimento da personalidade dos seus
membros em detrimento de uma proteção ensimesmada da instituição familial. Nessa
linha, registra-se que arranjos familiares simbolizam, ainda, estruturas de poder mar-
cadas pela feição patriarcal, machista e sexista, e demandam uma tutela funcionalizada
aos seus integrantes e não mais de per si. Sob a lente da solidariedade familiar, os deveres
de cuidado e de amparo são impostos aos membros da comunidade familiar em relação
aos sujeitos vulneráveis que compõem os mosaicos familiares plurais; não obstante,
para além da violação dos deveres de ordem extrapatrimonial e de índole constitucional
que são atribuídos a alguns integrantes do círculo familiar em relação aos mais frágeis,
igualmente se visualiza terreno fértil para violências intrafamiliares, bem como casos de
abandono e negligência, que aprofundam as desigualdades e vulnerabilidades existentes
no campo familiar.
É bem verdade que, nas últimas décadas, a teoria da responsabilidade civil se viu
profundamente modif‌icada, não somente em razão da sua penetrabilidade em áreas até
então imunes à sua incidência. O sistema clássico da responsabilidade civil fundado na
culpa e na bipartição entre contratual e delitual não mais subsiste intacto. A insuf‌iciên-
cia daquele modelo cedeu espaço para a responsabilidade objetiva. Convive-se, hoje,
com a responsabilidade subjetiva, calcada na culpa, e com a responsabilidade objetiva,
fundada no risco, cuja distinção perde nitidez com a socialização dos riscos e “gradual
reunif‌icação entre a antijuridicidade e o dano”3. Além disso, esmaeceu-se a classif‌icação
f‌incada nas fontes do dever de indenizar, se contratual ou aquiliana4. São tão radicais as
transformações sofridas pela responsabilidade civil nos últimos anos que a doutrina já
se esmerou em destacar seus novos paradigmas5 e suas funções6 diante do panorama de
incertezas que apresenta.
Tais questões desaguam nos contornos da responsabilidade civil nas relações fami-
liares, uma vez que a sisudez dos pressupostos e a rígida dicotomia cedem espaço para
uma análise valorativa das peculiaridades da dinâmica familiar e do exame em concreto
do dever de cuidado, que aciona a obrigação de indenizar nas hipóteses do chamado
abandono afetivo ou moral, na qual se admite a indenização em favor do f‌ilho que não
teve o suporte e o acompanhamento do genitor ao longo da infância e da juventude, ou
seja, foi-lhe suprimido o cuidado ao longo do seu desenvolvimento, o que é imposto
por força do art. 227 da Constituição e das normas infraconstitucionais protetivas. O
abandono afetivo já é amplamente aceito em nossos tribunais, sobretudo a partir da pa-
radigmática decisão do Superior Tribunal de Justiça no REsp. 1.159.242/SP, de lavra da
3. SCHREIBER, Anderson. Novos paradigmas da responsabilidade civil: da erosão dos f‌iltros da reparação à diluição
dos danos. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 222.
4. Embora mantida a dualidade nos sistemas de direito positivo, vem-se evidenciando uma tendência doutrinária de
superar tal dicotomia com a adoção de um regime misto compreendendo uma teoria geral da responsabilidade civil,
reunindo os princípios e os pressupostos comuns a toda as hipóteses, e regimes específ‌icos, inerentes aos diversos
ramos que se vêm construindo no campo da lei e da jurisprudência, como, por exemplo, a responsabilidade pelo
exercício prof‌issional, a dos produtores perante os consumidores, [....] a dos representantes legais, a do abuso de
direito em geral”. AMARAL, Francisco. Direito Civil Introdução. 7. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, p. 584-585.
5. Ver, por todos, SCHREIBER, Anderson. Op. cit., passim.
6. V., por todos, ROSENVALD, Nelson. As funções da responsabilidade civil: a reparação e a pena civil. São Paulo: Atlas,
2013.
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