Medidas excepcionais sobre as obrigações e os contratos

AutorGuilherme Calmon Nogueira da Gama/Thiago Ferreira Cardoso Neves
Páginas55-123
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MEDIDAS EXCEPCIONAIS SOBRE AS
OBRIGAÇÕES E OS CONTRATOS
Com o mesmo propósito de regular certas relações de Direito Privado, em que a
pandemia impactará sobremaneira na vida em sociedade e, também, na economia, o Pro-
jeto de Lei nº 1.179/2020 trouxe previsões excepcionais sobre as relações obrigacionais
e contratuais, as quais deveriam ser observadas tanto durante o período da pandemia,
quanto após o seu término, dadas as repercussões futuras do evento presente. Portanto,
tais disposições permaneceriam atuais por longo espaço de tempo, enquanto perduras-
sem os efeitos da crise epidêmica, ainda quando ela tiver sido eliminada.
No entanto, o Poder Executivo vetou os dois dispositivos que compunham o
Capítulo IV da Lei n° 14.010/20 e que regulavam as relações obrigacionais e contra-
tuais, perdendo, assim, uma grande oportunidade de def‌inir regras que pacif‌iquem
os inúmeros conf‌litos que já eclodiram, e que continuarão eclodindo, pós-período
de pandemia.
Sem prejuízo, a ausência de regramento legal não impede que diversos pontos
controvertidos e tortuosos sejam enfrentados. Ao contrário, dados os impactos do
coronavírus sobre as relações obrigacionais, imperiosa é a sua análise nesta obra.
Como se verá, a ausência de previsão da lei não impede que as medidas nela previstas
sejam tomadas, especialmente no âmbito do Poder Judiciário. Em verdade, a omissão
legislativa dará mais liberdade aos juízes, o que tem, por certo, seu lado bom e o seu
lado ruim. O lado bom é a possibilidade de um exame casuístico e concreto, evitan-
do-se o engessamento legislativo. O lado negativo, entretanto, é o da possibilidade de
decisões díspares e conf‌litantes, dada a ausência de regras próprias para a solução dos
conf‌litos, gerando certa insegurança jurídica. A busca da uniformização da orientação
jurisprudencial, tão enfatizada pelas normas do CPC/15, nunca será tão importante
como agora.
Diante deste cenário, importa-nos examinar as diversas nuances da crise epidêmi-
ca sobre as obrigações e, particularmente, sobre os contratos, cuja relevância jurídica,
social e econômica é destacada.
Principais instrumentos para o tráf‌ico das relações jurídicas, especialmente aquelas
que envolvem interesses patrimoniais, os contratos vêm sendo fortemente atingidos
pelo estado de calamidade que se instalou não apenas no Brasil, mas nos principais
centros econômicos do mundo. Por isso, as questões envolvendo as repercussões que a
pandemia vem produzindo sobre as relações contratuais merecem particular atenção.
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DIREITO PRIVADO EMERGENCIAL • GUILHERME CALMON NOGUEIRA DA GAMA E THIAGO FERREIRA CARDOSO NEVES
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Sobre a matéria, o Projeto de Lei nº 1.179/2020 regulamentava diversas questões que
dizem respeito ao não cumprimento das obrigações contratuais, mais particularmente o
afastamento dos efeitos da mora e do inadimplemento pelo caso fortuito e a força maior;
a possibilidade ou não de revisão dos contratos por fato superveniente e imprevisível
(teoria da imprevisão, teoria da quebra da base objetiva do negócio); o impacto sobre o
direito de arrependimento previsto no art. 49 do Código de Defesa do Consumidor; e a
impossibilidade de concessão de medidas judiciais antecipatórias visando o despejo de
locatários em contratos de locação de imóvel urbano.
A maioria delas, contudo, foi vetada pelo Poder Executivo, o que não foi de todo
equivocado. Como veremos, algumas disposições do Projeto de Lei eram desnecessárias,
dada a obviedade do texto legal. Outras mereceram, também com razão, o veto presiden-
cial, pois equivocadas. Há, contudo, disposições que deveriam ter sido conservadas, a f‌im
de servir o propósito de pacif‌icação das relações, evitando-se a eternização de conf‌litos.
Além destas, muitas outras questões poderiam ter sido disciplinadas, como, por
exemplo, aquelas envolvendo algumas relações contratuais de trato sucessivo que,
embora tenham natureza patrimonial, exercem forte inf‌luência sobre interesses exis-
tenciais, como contratos de prestação de serviços, dentre eles o escolar, especialmente
no ensino básico, além de aspectos materiais envolvendo os contratos de locação re-
sidencial e não residencial, bem como contratos bancários de um modo geral e os de
f‌inanciamento para a compra de bens móveis e imóveis. Tais omissões, contudo, não
signif‌icam a impossibilidade de aplicação dos regimes próprios de caráter permanente
já previstos em lei para negociação e revisão dos contratos, que serão importantíssimos
não apenas durante o período da pandemia, mas também depois da superação desta,
como se buscará demonstrar ao longo dessas linhas.
3.1 O INADIMPLEMENTO DAS OBRIGAÇÕES E A ISENÇÃO DE
RESPONSABILIDADE PELA OCORRÊNCIA DO CASO FORTUITO OU DE
FORÇA MAIOR
O PL nº 1.179/2020 dirigia o seu Capítulo IV aos impactos do COVID-19 sobre
os contratos, disciplinando diversos aspectos das relações obrigacionais contratuais. O
artigo que inaugurava este capítulo, hoje integralmente vetado, tratava particularmente
dos efeitos do caso fortuito e da força maior sobre as obrigações não adimplidas em de-
corrência da pandemia. Segundo o art. 6º, “As consequências decorrentes da pandemia
do Coronavírus (Covid-19) nas execuções dos contratos, incluídas as previstas no art.
393 do Código Civil, não terão efeitos jurídicos retroativos”.
O referido veto em nada prejudicou o regime legal da isenção de responsabilidade
por caso fortuito ou força maior, dada a obviedade da sua disposição, como se demons-
trará. Mas antes de se aprofundar no tema, é importante destacar que o veto não impe-
diu que sejam invocadas as duas causas de exclusão de responsabilidade, as quais são
plenamente aplicáveis às relações jurídicas durante a pandemia, nos casos em que, de
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fato, haja um impacto sobre as referidas relações. Por essa razão, imperiosa é a análise
desses dois institutos.
Primeiramente é preciso observar que o art. 393 do Código Civil trata da
isenção de responsabilidade pelos efeitos do inadimplemento das obrigações em
decorrência de um evento fortuito ou de força maior, ou seja, diz respeito às reper-
cussões do atraso ou do não cumprimento de uma obrigação quando estes se dão
em razão de um fato que, de modo necessário e absoluto, impede a execução da
prestação e cujos efeitos são inevitáveis para a parte, caracterizando-se, pois, como
um inadimplemento fortuito.1
Obrigação é, de modo objetivo, o vínculo jurídico temporário que liga o credor ao
devedor, constrangendo-o à entrega de uma prestação, como regra, economicamente
aferível. O vínculo obrigacional, então, impõe ao devedor o cumprimento de uma
obrigação, que consiste na entrega de uma prestação que pode ser um dar, um fazer ou
um não fazer.2
Ao não entregar a prestação, tem-se o inadimplemento, o qual pode ser parcial –
mora – ou total – inadimplemento absoluto –, e que traz para o devedor repercussões
sobre a sua esfera jurídica, as quais variam conforme a causa que leve ao descumprimento.
As repercussões ou consequências do inadimplemento da obrigação perpassam,
necessariamente, pela análise das chamadas teorias monista e dualista da obrigação. De
acordo com a primeira, entende-se que a obrigação é una, de modo que o seu descum-
primento acarreta um mero desdobramento que não se separa da essência da obrigação,
enquanto que para a segunda teoria a obrigação se desdobra em dois elementos ou duas
fases, quais sejam, o débito e a responsabilidade (schuld e haftung / debitum e obligatio).3
O débito corresponde ao dever jurídico naturalmente imposto pela obrigação ao devedor
de cumpri-la voluntariamente no prazo, forma e local acordados. Já a responsabilidade
1. RODRIGUES JUNIOR, Otavio Luiz. Revisão judicial dos contratos: autonomia da vontade e teoria da imprevisão.
2. ed. São Paulo: Atlas, 2006. p. 100.
2. O conceito de obrigação não é unívoco. A doutrina tem, ao longo do tempo, apresentado e desenvolvido inúmeras
def‌inições acerca das obrigações. A visão atual de uma obrigação não é idêntica àquela tradicional do Direito
romano encontrado nas Institutas de Justiniano, em que a obrigação consiste no vínculo obrigacional que une
o devedor ao credor, tornando aquele escravo deste. Sem prejuízo, ambas se centram em um aspecto, a saber,
a existência de um vínculo jurídico. Nesse sentido, observam Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald
que “Já era possível, pois, perceber que o núcleo essencial da obrigação era o vínculo existente entre o credor e o
devedor, pelo qual um poderia exigir, coercitivamente, do outro, uma prestação. Exatamente por isso notava-se
que o cerne da obrigação não poderia ser tornar alguém proprietário de algo, mas sim obrigar alguém a dar, fazer
ou não fazer alguma prestação” (FARIAS, Cristiano Chaves de; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil:
obrigações. v. 2. 11. ed. rev., ampl. e atual. Salvador: JusPodivm, 2017. p. 34).
3. As expressões débito e responsabilidade são comumente encontradas na doutrina para designar as duas fases
da obrigação. Nesse sentido ver, exemplif‌icativamente, LOPES, Miguel Maria de Serpa. Curso de direito civil:
obrigações em geral. v. II. 7. ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000. p. 332. Há, contudo, diversas outras no-
menclaturas empregadas para designar os dois momentos obrigacionais. Orlando Gomes os divide em dever de
prestação e sujeição (GOMES, Orlando. Obrigações. 15. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 12), enquanto que
Silvio Rodrigues nomeia a primeira fase de dívida, a qual corresponde, em seu entender, “ao dever que incumbe
ao sujeito passivo de prestar aquilo a que se comprometeu” (RODRIGUES, Silvio. Direito civil: parte geral das
obrigações. v. 2. 30. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 5).
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