Medidas excepcionais sobre os direitos reais

AutorGuilherme Calmon Nogueira da Gama/Thiago Ferreira Cardoso Neves
Páginas125-145
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MEDIDAS EXCEPCIONAIS
SOBRE OS DIREITOS REAIS
Os efeitos da pandemia no ano de 2020 se espraiam também por institutos da mais
alta importância no segmento do Direito das Coisas. Durante o período coberto pelas
medidas implementadas pelas autoridades públicas referente ao isolamento social, à
quarentena, entre outras, – com vistas à tentativa de conter a disseminação do CO-
VID-19 –, há aspectos referentes a alguns institutos do Direito das Coisas que merecem
consideração.
A Lei n° 14.010/20 busca introduzir normas transitórias e emergenciais relativamen-
te ao sistema jurídico de Direito Privado mais relacionado ao segmento do Direito das
Coisas. Tal como o fez relativamente ao regime jurídico da prescrição e da decadência, a
Lei n° 14.010/20 prevê uma causa temporária de suspensão do prazo para aquisição de
direito real na modalidade da usucapião. Além disso, haverá a prorrogação excepcional e
automática do mandato do síndico nos condomínios edilícios e de inovação temporária
quanto à realização das assembleias condominais, com o reforço do dever do síndico na
prestação das contas. Houve veto presidencial a respeito da regra que previa a atribuição
de poderes emergenciais e transitórios ao síndico durante o período da pandemia o que,
no entanto, não desnatura a essência das medidas emergenciais no meio condominial
que podem vir a ser adotadas.
A introdução de regras emergenciais e temporárias em tema de direitos reais tem
fundamento inequívoco na excepcionalidade do contexto atual decorrente do CO-
VID-19, associada às medidas adotadas pelas autoridades públicas no sentido da con-
tenção da propagação da doença no meio populacional. Como há atos do Poder Público
que restringem, limitam ou, em alguns casos, até proíbem a locomoção das pessoas, a
realização de reuniões presenciais (para evitar aglomeração de pessoas), o deslocamento
para outros locais fora dos limites territoriais dos municípios, por exemplo, nada mais
razoável do que considerar que, por fato alheio à vontade da pessoa, ela não possa adotar
certos comportamentos que, exemplif‌icativamente, impediriam a consumação do prazo
legal para a usucapião em favor do possuidor de determinado imóvel.
A Lei 13.979/20, ao tratar das medidas adotadas pelo Poder Público para o f‌im de
combater à pandemia do COVID-19, claramente refere-se à necessidade de que elas sejam
limitadas no tempo e no espaço ao “mínimo indispensável à promoção e preservação da
saúde pública”, sem que possam representar violação à dignidade, aos direitos humanos
e às liberdades fundamentais da pessoa (art. 3º, §§ 1º e 2º, III).
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DIREITO PRIVADO EMERGENCIAL • GUILHERME CALMON NOGUEIRA DA GAMA E THIAGO FERREIRA CARDOSO NEVES
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Logo, as medidas decorrentes do combate à COVID-19 revelaram situações atípicas
e excepcionais que somente em razão de regras temporárias e extravagantes poderão
ser reguladas no âmbito do Direito das Coisas.
4.1 NOVA MODALIDADE DE CAUSAS DE IMPEDIMENTO E DE SUSPENSÃO DOS
PRAZOS DE USUCAPIÃO
No âmbito dos modos de aquisição da propriedade mobiliária ou imobiliária, no
Direito brasileiro, a usucapião é aquele que mais propriamente associa o fenômeno
possessório a determinados outros pressupostos – tais como o fator do tempo – para
gerar o fenômeno jurídico do surgimento do direito real de propriedade ou de um direito
real sobre coisa alheia. A usucapião permite que certa situação de fato – a posse –, não
molestada e sem oposição, e que tenha se prolongado por certo período de tempo pre-
visto em lei, além de outros elementos, possa ser convertida em uma situação jurídica
mais qualif‌icada consistente num direito real – de propriedade ou direito real sobre
coisa alheia1.
A usucapião, como modo de aquisição da propriedade em favor do então possuidor
do bem, é o instituto que mais evidencia a função social do fenômeno possessório. E, por
isso, a usucapião não deixa de consistir numa espécie de sanção à inércia do proprietário
registral do bem, razão pela qual tal inércia associada à existência de posse qualif‌icada
do bem por outra pessoa fazem da usucapião uma condição resolutiva em sentido amplo
da propriedade anteriormente existente2.
Há consenso doutrinário no sentido de que a usucapião se fundamenta na cir-
cunstância de atribuir segurança jurídica e estabilidade à posição do possuidor que, ao
proporcionar o aproveitamento econômico e social do bem, concretiza a função social
da posse3.
A Lei nº 14.010/2020 prevê a suspensão dos prazos para aquisição da propriedade
imobiliária ou mobiliária desde o início da vigência da lei (em sendo aprovado e sancio-
nado o PL) até 30.10.2020 (art. 10), data provável de cessação dos efeitos decorrentes
das restrições ou proibições que foram impostas em decorrência do COVID-19. O
legislador excepcional, a respeito deste tema, pretende seguir a mesma lógica ínsita à
regra do art. 1.244, do Código Civil, que estende ao possuidor, no que couber, as causas
de impedimento, suspensão ou interrupção do prazo de prescrição para as hipóteses
de prescrição. Na estrutura normativa do Código Civil, por exemplo, não corre prazo
para f‌ins de usucapião entre ascendente e descendente durante o poder familiar (CC,
art. 1.244, c.c. art. 197, II), tal como não corre prazo de prescrição entre eles em matéria
obrigacional.
1. GAMA, Guilherme Calmon Nogueira da. Direitos Reais. São Paulo: Ed. Atlas, 2011, p. 317.
2. FACHIN, Luiz Edson. A função social da posse e a propriedade contemporânea. Porto Alegre: SAFabris, 1988, p.
36.
3. GOMES, Orlando. Direitos reais. 19. Ed. Forense: Rio de Janeiro, 2008, p. 187.
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