A responsabilidade civil do empregador por acidente de trabalho com empregado motoboy

AutorMaíra Yasmin Félix Silva
Ocupação do AutorBacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Recife ? UFPE e servidora do Tribunal de Justiça de Pernambuco ? TJPE
Páginas113-122

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1. Introdução

Quantas vidas valem um alimento mais quente e o status de rapidez de um serviço? Esse questionamento evidencia a relevância da análise da responsabilidade civil do empregador em caso de acidente de trabalho que envolva motoboys, por atentar para o crescente número de acidentes com motociclistas no Brasil e a dependência da sociedade quanto aos serviços prestados por essa categoria.

A tônica do debate perpassa, pois, o enfrentamento de como o empregador pode ser responsabilizado diante de infortúnios desta espécie, precipuamente sob os aspectos das três teorias levantadas sobre o tema, a saber: a responsabilidade subjetiva, consubstanciada na necessidade de comprovação da culpa do empregador em caso de acidente de trabalho e fundamentada no art. 7º, XXVIII, da CF/88; a objetiva com esteio no parágrafo único do art. 927 do Código Civil de 2002, para o caso de atividades pontuais; e a objetiva com fulcro no art. 2º da CLT, a refutar, por completo, a imprescindibilidade do elemento culpa, qualquer que seja a atividade desenvolvida.

2. Responsabilidade civil subjetiva do empregador

A Constituição da República de 1988, em seu art. 7º, inciso XXVIII, assegura ao trabalhador urbano e rural, além do seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador, "a indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa."1

Diante do supracitado dispositivo constitucional, parte da doutrina posiciona-se no sentido de que a responsabilidade do empregador deve ser tratada segundo as regras da responsabilidade subjetiva, porque assim o quis expressamente o constituinte2.

Para os adeptos desse entendimento, cujo principal argumento reside na maior hierarquia da Constituição da República de 1988 frente às demais leis ordinárias, no momento em que a CF/88 exige a presença do elemento culpa ou dolo, não pode lei ordinária se sobrepor a tal exigência constitucional3.

Nesse sentido, trazer o art. 927, parágrafo único, do CC/2002 para disciplinar a responsabilidade civil do empregador em caso de acidente de trabalho representaria uma afronta à Carta Magna e, assim, a inobservância do critério hierárquico Lex superior derogat inferiori4, pois a regra contida no dispositivo civilista apenas deve se reportar a casos outros, não afetos aos acidentes de trabalho.

Segundo a ótica da responsabilidade subjetiva, portanto, o empregador fica obrigado a reparar o dano tão somente quando venha a incorrer em dolo ou culpa, como quando descumpre deveres de segurança, higiene e prevenção previstos legalmente5, notadamente na hipótese de não fornecimento de equipamentos individuais de proteção (EPIs) aos empregados, sobre os quais recai o ônus de comprovar a relação entre o dano e alguma ação ou omissão dolosa ou que resultante de imprudência, negligência ou imperícia do empregador6.

3. Responsabilidade civil objetiva do empregador

A dificuldade probatória no que concerne à demons-tração da culpa do causador do dano, projetada para o âmbito dos acidentes de trabalho, ensejou o desenvolvimento de argumentos contrários à aplicação exclusiva da responsabilidade civil fundamentada na culpa, atualmente voltados para a responsabilidade objetiva prevista no art. 927, parágrafo único, do CC/2002, assim como para a inserta no art. 2º da CLT.

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Por cautela, salienta-se que o art. 7º, XVIII, da CF/88, ao exigir a presença do elemento culpa, rege as hipóteses de acidentes de trabalho tipo individual7, situação que difere do caso em que o dano é direcionado ao próprio ambiente do trabalho8, em que o meio ambiente, por sofrer alguma lesão9, acaba por atingir a saúde do empregado ou, muito provavelmente, de vários deles.

Pois bem. Quando o acidente de trabalho é resultado de um dano ambiental, o entendimento pacífico aponta para a responsabilidade civil objetiva do empregador, com esteio nos art. 225, § 3º c/c art. 200, VII e art. 14, § 1º da Lei n. 6.938/8110; quando o infortúnio, por sua vez, é considerado em sua individualidade, também a responsabilidade civil objetiva passa a ser levada em consideração, mas com base nos dispositivos legais a serem analisados nos tópicos que seguem.

3.1. Responsabilidade civil objetiva do art 927, parágrafo único do CC/2002

Com fundamento legal no art. 927, parágrafo único do CC/2002, de aplicação supletiva ao disposto no art. 7º, inc. XXVIII da Carta Maior11, a doutrina majoritária adota um posicionamento misto ou eclético, ao admitir a coexistência das teorias subjetiva, como regra geral, e objetiva - de invocação excepcional -, aplicável apenas quando o acidente de trabalho verificar-se em atividade de risco mais acentuado em relação aos da coletividade.

Na seara trabalhista, o emprego do art. 927, parágrafo único, do CC/2002 encontra permissão no art. 8º, parágrafo único, da Consolidação das Leis do Trabalho, que admite o direito comum como fonte subsidiária do Direito do Trabalho, na medida em que não seja incompatível com seus princípios fundamentais12.

Por sua vez, o art. 927, parágrafo único, do CC/2002 dispõe que "haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem."13

Quanto à primeira parte do dispositivo em evidência, são exemplos de legislações a consagrar a responsabilidade objetiva o Código de Defesa do Consumidor e a própria lei acidentária; no que concerne à segunda - uma norma aberta - o legislador não define o que vem a ser atividade de risco, o que possibilita a ampliação dos casos de danos indenizáveis14 por demandar a delimitação em lei específica ou pelo intérprete, na análise do caso a ele apresentado.

Diante desse panorama, ainda emerge o questionamento: a partir de que grau de risco o dano causado acarreta o direito à indenização?15 Em outros termos, como definir, então, quando uma atividade implica, ou não, por sua natureza, risco aos direitos de outrem?

De fato, mostra-se árdua a tarefa de interpretar o que vem a se enquadrar como atividade de risco, tendo em vista a existência de riscos inerentes à própria vida em uma sociedade globalizada e de produção em massa. Entretanto, a doutrina entende que o risco da atividade há de ser considerado maior que o suportado pelo homem médio, ou seja, se o trabalhador desempenha atividade que apresenta maior grau de risco, maior probabilidade de dano quando comparado ao risco em geral, fará jus à indenização pelo tão só fato de exercê-la16.

Em que pese o termo "risco" seja polivalente17 - que pode, em dado momento, ter acepção de elemento essencial, como no contrato aleatório, ou mesmo o perigo

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de deterioração a que se sujeita o objeto de uma relação jurídica -, para o instituto da responsabilidade civil, desenvolve-se como fundamento do dever de reparar18, e, assim, assume, dentre os existentes, conceito próprio no vocabulário jurídico.

Nesse âmbito, portanto, a acepção do termo "riscos" representa uma probabilidade de dano, de modo que se estará diante de uma atividade de risco quando este, em outras situações similares, se verificou de forma reiterada19,

caso em que aquele que a exerça tenha de assumir os inerentes riscos, com a consequente reparação do dano causado20.

De todo modo, a doutrina e a jurisprudência adotam o sentido estabelecido no Enunciado n. 38 aprovado na I Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, para quem a atividade de risco é aquela que, normalmente desenvolvida pelo autor do dano, causa a determinada pessoa ônus maior que o suportado pelos demais membros da coletividade21.

Nessa conjectura, a questão só pode ser analisada casuisticamente, representando uma atividade de risco aquela que, em razão de sua natureza ou periculosidade inerente, exponha o trabalhador a maior probabilidade de dano, sem descuidar que o Código Civil Pátrio não exige como pressuposto o desenvolvimento de uma atividade perigosa, mas a toda e qualquer atividade que implique riscos aos direitos de outras pessoas, porquanto não só atividades perigosas causam riscos22.

Em suma, do acidente de trabalho decorrem três tipos de responsabilidade: uma subjetiva - regra geral - disciplinada pelo art. 7º, XVIII, segunda parte, da Constituição da República de 1988, e duas objetivas, a primeira referente à indenização acidentária (primeira parte do mesmo artigo) e a segunda relativa ao parágrafo único do art. 927 do CC/0223; na hipótese de acidente típico com efeitos de ordem individual, em que ausente atividade de risco, a responsabilidade da patronal será a fundada na culpa, do contrário, caso se trate de lesão ambiental ou presente a atividade de risco, será a objetiva24.

3.2. Responsabilidade civil objetiva com fulcro no art 2º da CLT

Outra corrente retira do art. 2º da CLT o fundamento para responsabilizar objetivamente o empregador em caso de acidente de trabalho. O dispositivo em comento, ao mesmo tempo em que define o empregador, ainda estabelece que é dele a assunção dos riscos da atividade econômica, quando dispõe: "considera-se empregador a empresa, individual ou coletiva, que, assumindo os riscos da atividade econômica, admite, assalaria e dirige a prestação pessoal de serviço."25

Para essa doutrina, minoritária, apesar de a aplicação do parágrafo único do art. 927 do CC/2002 significar um avanço diante da visão literal que se tem do art. 7º, XVIII, da CF/88, é mais antiga a proteção dada pelo legislador Pátrio aos trabalhadores...

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