A afirmação feminina na igualdade substancial familiar

AutorCarlos José Cordeiro/Josiane Araújo Gomes
Páginas391-406

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Ver Nota12

Introdução

Para o enfretamento do tema a que se propôs, de intricada dificuldade, diga-se de passagem, a estratégia jurídico-científica dar-se-á, mesmo que em rápida análise, em duas perspectivas. A primeira, de cunho sociológico, por meio da qual se remonta a história feminina na formação da família européia e brasileira, caso em que serão focados pontos que têm origem na Idade clássica e no Brasil colônia até os tempos pós-modernos, portanto, atuais. A segunda perspectiva diz

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respeito ao tratamento que o sistema jurídico concedeu à mulher ao longo desta mesma sanha histórica. Destarte, não há como negar a busca de um sincretismo entre a sociologia e o direito orbitando no entorno feminino.

Por fim, a considerar o cariz eminentemente democrático e substancial da Constituição Federal, é dever partir para a compreensão dos institutos jurídicos existentes que representam a consagração normativa de proteção e defesa da mulher no quadro familiar e social.

1 Aspectos sociológicos da família e da fragilização da Mulher

Inicialmente, vale um aviso. É muito difícil situar não só a mulher (o feminino) e a família até o século XVIII, isto porque os estudos de antanho são muito mais destinados ao público do que à seara privada.3O público é o todo e o privado (incluindo a família) é o resto, a sobra. Portanto, há mais uma tendência em não se inscrever as lutas femininas ou a busca pelo igual familiar.

Aliás, o escrever a historiografia feminina dependeu muito mais da própria mulher do que de seu agente mais opressor: o homem. Vale mencionar que “a descoberta de que as mulheres possuíam uma história e que valia a pena procurar por ela, resultou dos próprios questionamentos que estas fizeram acerca de si próprias, rejeitando uma estrutura de supremacia masculina solidamente aceita e negando a visão clássica da inferioridade do sujeito feminino”.4A lente do jurista é capaz de informar que, num primeiro momento da história da humanidade, as relações tanto proprietárias quanto obrigacionais tinham cunho coletivo. Isto é: uma determinada tribo realizava suas tratativas com outra tribo pelo todo, obrigando cada um de seus membros. Inicialmente, o descumprimento de qualquer obrigação levava as tribos a um estado de beligerância, até a criação de mecanismos outros, como a multa ou penas que passaram a substituir as guerras.5

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Renan Lotufo, explicitando o direito obrigacional, traz à colação uma importante lição de Clóvis Beviláqua com apoio em H. Post. Relata que para a sobrevivência dos grupos se fazia necessária a existência de mulheres. Daí que alguns grupos adquiriam mulheres de outros grupos, havendo a contribuição laboral ou pecuniária de cada um de seus membros para esta aquisição. Com o tempo, essa troca deixou de se dar entre grupos, fixando-se em famílias, e por fim, alcançou a figura do noivo que comprava a esposa.6De outro lado, o chefe do grupo era representado pela figura do caçador masculino. Sabe-se que o chefe do grupo sentava na porta da caverna de costas para sua tribo que estava acomodada no fundo da caverna. Somente quando o chefe da tribo saía para caçar, os demais também estavam autorizados a tanto.7Essa pessoa era levada à condição de líder do clã, porque era mais forte, mais ágil para a caça, sendo a atribuição passada de pai para filho. Essa interação entre o chefe da tribo e seus seguidores foi alcunhada de status, mais tarde evoluiu para Estado, estatutário, estatolatria, indicando uma relação de poder/sujeição, o que também afetou nitidamente a formação das famílias, com o poder dos homens (caçadores e bélicos) com a sujeição das mulheres (responsáveis pela continuidade da tribo, pela reprodução).

Essa sujeição da mulher ao poderio masculino tem duração temporal de larga escala, porque é preservada na Idade Clássica, na Idade Média, na Idade Moderna e no Estado Liberal. Veja-se que no período clássico, mesmo com o distributivismo aristotélico, a mulher quase que detém o mesmo papel que na época das cavernas: dar seguimento às famílias, por meio da reprodução e da criação dos filhos, sem qualquer participação ativa social. Sua identificação mais sublime é aproximada da invocação da deusa Afrodite (na Grécia) e pela deusa Vênus (em Roma), em que o feminino nesta época é simbolizado mediante o desenho de

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um círculo, que representa o espírito, sobreposto a uma cruz, que indica a matéria.8Na Idade Média, exsurgem os importantes estudos de São Tomás de Aquino, pelos quais a mulher, mesmo não guardando qualquer direito político, passa a integrar o conceito de pessoa humana, ao lado das crianças. E nesse passo vale a paródia bíblica de que a mulher é retirada das costelas do homem por conta de uma pseudo noção de igualdade, porque se fosse retirada do osso da perna seria inferior e se retirada do osso do crânio seria superior ao homem. Há também outra interpretação bíblica, segundo a qual a mulher foi retirada das costelas do homem porque esses são ossos que protegem o coração.

Da Idade Média decorreu a Idade Moderna com o surgimento da navegação e o advento das grandes descobertas. Período em que o Brasil é descoberto e colonizado pelos portugueses. E aqui basicamente pode-se perquirir acerca da história sociológica da mulher brasileira.

Registra Sérgio Buarque de Holanda, numa síntese quase impossível de ser feita, que a colonização portuguesa limitou a economia do Brasil à agricultura canavieira, aproximou o europeu do índio e do africano, miscigenando as raças, mas impondo padrões, sobretudo, patriarcais na sociedade brasileira.9No Brasil colônia, a mulher é condicionada a ser sujeita a todos os caprichos sociais e patriarcais, sem a possibilidade de exercer desejos e vontades. É espírito sem espectro. É matéria sem substância. As donzelas deveriam comportar-se como as freiras, chamadas então de irmãs de Maria (não iguais a Maria, porque essa era mãe de Cristo, mas pelo menos semelhantes à Maria no celibato). Os jovens masculinos se faziam homens já aos doze ou treze anos de idade, quando já começavam a usar ternos e buscar as marcas da sífilis para a autoproclamação masculina.

Não assim acontecia com as jovens mulheres brasileiras de então que, inclusive, eram barbaramente assassinadas pelos próprios pais (e até pelas mães), porque se atreviam a estender um lenço no varal, fato esse que poderia ser interpretado

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como indicativo de mulher desejosa do sexo oposto. Comum era o estupro perpetrado pelos maridos às esposas e a tolerância das esposas com a infidelidade de seus parceiros com as escravas. Do ponto de vista masculino, exigia-se da mulher um comportamento ordeiro. Do ponto de vista feminino, cumpria-se uma regra de conduta em obediência. Mas do ponto vista do historiador, observava-se um relacionamento de sujeição.

É na subserviência feminina que os estudos de Gilberto Freire demonstram uma importância histórica e sociológica vital para o tema ora em debate. Além de explicitar a normalidade da violência doméstica exercida pelo marido dentro da casa-grande, relembra como deveria ser o tratamento lhe destinado pelos filhos e esposa: ele que ao pai devia chamar senhor pai e à mãe senhora mãe: a liberdade de chamar de papai e mamãe era só na primeira infância. Esse duro costume modificou-se, porém, no século XIX. Como modificou-se o das mulheres só chamarem o marido de senhor; as mais afoitas foram chamando-o de tu, as outras de você, acabando-se com o rígido tratamento colonial de senhor da parte das esposas e dos filhos. Até então, esposas e filhos se achavam quase no mesmo nível dos escravos.10

2 Positivismo liberal e sistema normativo dogmático

Não há dúvidas que todos esses fatores contribuíram sobremaneira quando dos estudos e vigência do Código Civil. Em primeiro lugar, do Esboço de Teixeira de Freitas, apesar dos avanços consagrados na possibilidade da mulher demandar o marido, havia toda uma carga de subserviência e sujeição da primeira em relação ao segundo. Isto se observa no art. 1.306 que determina à mulher seguir sempre o marido e, inclusive, dele depender de autorização para prática dos atos civis.11Em termos atuais, a proposição de antanho demonstra às claras que a mulher, o feminino, era um ser incapaz, débil, passível de curatela.

O Código Civil de 1916, ao seu turno, regrando de forma separada os efeitos do casamento para o marido e para a mulher, também demonstra uma nítida

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subserviência feminina. Veja-se que, pelo art. 233, o marido era o cabeça de casal, representante legal da família e, portanto, remonta a ideia do chefe da caverna, tanto que a partir dele fixa-se o domicílio. Já a mulher é considerada apenas o apêndice para administração doméstica (art. 240), mesmo porque não era necessária a autorização do marido na compra dos suprimentos necessários à economia residencial. O espaço feminino normativo tinha lugar, como regra geral, apenas na residência do casal. Não o mundo.

Demais disso, o Código Civil de 1916, prestigiando o contratante forte, o latifundiário e o marido, baseava-se numa igualdade formal, como assim intuído pelos juristas franceses responsáveis pelo Code de 1803. Imagine-se que, em termos de propriedade, concedia-se o direito absoluto ao proprietário na utilização e gozo de seu imóvel, autorizando o abuso do direito e o uso nocivo e pernicioso do bem frente à sociedade. No campo dos contratos, admitia-se apenas a intervenção estatal nos casos de vícios do consentimento, cláusula potestativa e cláusula leonina, porque essas retiravam a liberdade de contratar ou a autonomia da vontade, seu dogma...

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