Da admissão de filho socioafetivo como dependente em contrato de plano de saúde

AutorCarlos José Cordeiro/Josiane Araújo Gomes
Páginas171-201

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Introdução

O estudo ora proposto tem por objetivo posicionar-se a respeito da possibili-dade de admissão de filho socioafetivo como dependente em contrato de plano de saúde, tendo em vista, para tanto, a concepção atual do Direito das Famílias – dotada de nítido caráter existencial, baseada na afetividade –, bem como a

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legislação específica vigente responsável por disciplinar as contratações de plano de saúde.

Com efeito, a família contemporânea é fundada no sentimento, que se exterioriza pelo afeto, elemento primordial para a formação e manutenção das entidades familiares. Nessa esteira, o vínculo de filiação não mais é definível pela mera existência de descendência genética, ou mesmo de presunção legal, exigindo, para a sua configuração, a concreta assunção da função paterna/materna por quem pretenda ser reconhecido como pai/mãe. Logo, a filiação é concebida como a relação de parentesco, em 1º grau e em linha reta, que une uma pessoa – o filho – àquelas que a geraram ou a receberam como se a tivessem gerado – os pais –, abrangendo, pois, as verdades biológica, jurídica e afetiva.

Em vista disso, a filiação assume caráter instrumental, na medida em que tem por fim a realização pessoal das partes envolvidas. Por decorrência, deve ser reconhecida situação de total igualdade substancial entre os filhos, vedando-se qualquer conduta discriminatória. Aliás, tal desiderato é consagrado no art. 227, § 6º, da Constituição Federal de 1988, atribuindo a todos os filhos as mesmas prerrogativas, independente de sua origem ou da situação jurídica dos seus pais.

Nesse passo, quanto ao direito de inscrição, como dependente, do filho do usuário titular do contrato de plano de saúde, verifica-se que a Lei nº 9.656/98, complementada pela Súmula Normativa nº 25/2012 da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), disciplina apenas as hipóteses de filho biológico, adotivo, reconhecido judicial ou extrajudicialmente, e de criança sob guarda ou tutela. Nada traz com relação ao filho socioafetivo que não detenha qualquer ligação jurídica com o seu pai/mãe – situação conhecida pela expressão “filho de criação”. Logo, a ausência de previsão legal expressa sobre o filho afetivo fático impossibilita a sua inscrição como dependente em contrato de plano de saúde?

Dessa forma, a fim de responder a problemática apresentada, por meio da realização de pesquisa bibliográfica e documental e da adoção de procedimento metodológico dedutivo, realizado pelo procedimento técnico de análise textual, caberá, inicialmente, analisar o reconhecimento jurídico, fático e social da filiação socioafetiva; em seguida, verificar os requisitos e efeitos decorrentes do vínculo afetivo de filiação; após, abordar aspectos gerais acerca dos contratos de plano de saúde, notadamente as condições de admissão de usuários; para, ao final, apresentar posicionamento a respeito da possibilidade de inclusão de filho socioafetivo como dependente em contrato de plano de saúde, sendo que todas as análises desenvolvidas terão por marco a ideia de que a filiação deve ser conce-

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bida, enquanto mecanismo de formação de entidade familiar, como instrumento apto ao desenvolvimento digno da personalidade humana.

1 Do reconhecimento da filiação socioafetiva

O nascimento de uma pessoa provoca, como regra geral, a sua inserção na estrutura social denominada de família, a qual é compreendida, atualmente, como a reunião de pessoas ligadas por vínculos sanguíneos e afetivos, responsável pelo desenvolvimento da personalidade de seus integrantes. Constitui a família, assim, a unidade primária de associação dos indivíduos, exteriorizando-se como centro de companheirismo e afeto a serviço das próprias pessoas que a compõem.

Contudo, o entendimento da família como ambiente em que cada pessoa busca a sua própria realização por meio do relacionamento com outra(s) pessoa(s) é, relativamente, recente na legislação brasileira, tendo sido concebida pela Constituição Federal de 1988. De fato, verifica-se que, desde a instituição da República Brasileira3, houve a identificação da família à união de pessoas pelo casamento, desconsiderando qualquer questão relativa à realização pessoal dos seus integrantes; buscava-se a máxima proteção da paz doméstica e do patrimônio familiar, sendo, assim, a família fundada no matrimônio considerada um bem em si mesmo, de essencialidade inquestionável. Desse modo, antes do advento da ordem constitucional ora vigente, “os vínculos interpessoais, para merecerem aceitação social e o reconhecimento jurídico, necessitavam ser chancelados pelo que se convencionou chamar de matrimônio”.4Nessa esteira, vale dizer, anteriormente à vigência da atual Carta Magna, a legislação infraconstitucional adotava a concepção de identificação da família ao casamento e, por isso, o Código Civil de 1916 vedava o reconhecimento de

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quaisquer direitos às relações consideradas espúrias, adulterinas ou concubinárias. Apenas a entidade familiar tida por legítima merecia reconhecimento, o que implicava consequências à filiação, na medida em que só se admitia a perfilhação dos filhos concebidos na constância do casamento.

Assim, diante da ligação necessária instituída entre o estado da filiação e o estado civil dos pais e, ainda, a associação feita entre paternidade/maternidade e ascendência genética, verificava-se, nesse momento, a exteriorização de duas verdades acerca da definição da filiação de uma pessoa: a verdade jurídica e a verdade biológica.

Em primeiro lugar, quanto à verdade jurídica, tem-se a atribuição da filiação a uma pessoa por meio de presunções traçadas pelo legislador, justificadas na necessidade de se manter o bem-estar familiar, bem como a unidade econômica e social da família, o que ocasiona, inclusive, o menosprezo à filiação biológica. Nesse passo, a primeira presunção de destaque diz respeito à maternidade, sendo esta considerada sempre certa, haja vista se traduzir por sinais exteriores – consequências corporais da gravidez e o parto. Já no que se refere à paternidade, tem-se a sua presunção vinculada aos laços do matrimônio, ou seja, será considerado pai aquele que esteja casado com a mãe no momento da concepção da criança. Dessa forma, os filhos concebidos sem a existência do casamento são considerados bastardos, adulterinos, ilegítimos, sem direitos juridicamente reconhecidos.5Desse modo, considerando a hegemonia da família patriarcal e matrimonializada, foram instituídas, pelo legislador, presunções de filiação, a saber: a) a presunção pater is est quem nuptia demonstrant – o pai é aquele que as núpcias demonstram, o que impede a discussão quanto a origem da filiação se o marido

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da mãe não a negar em curto prazo preclusivo –; b) a presunção mater semper certa est – a mãe é sempre certa, o que impede a investigação de maternidade contra mulher casada –; c) a presunção de paternidade atribuída àquele que manteve relações sexuais com a genitora no período da concepção; d) a presunção de exceptis plurium concumbentium – quando a genitora mantém relações sexuais com mais de um homem no período da concepção, surge incerteza quanto à paternidade, o que impede o seu reconhecimento6; e) a presunção de paterni-dade quanto aos filhos concebidos 180 dias antes do casamento e 300 dias após a dissolução da sociedade conjugal.7Todavia, as alterações que se sucederam nas relações familiares – notadamente, a instituição da dissolubilidade do vínculo matrimonial, pela Lei nº 6.515/77 (Lei do Divórcio)8–, aliadas ao desenvolvimento médico-científico, permitiram a relativização das presunções de filiação, haja vista a intensificação da busca pela

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sua verdade real, situação esta que, inclusive, foi dotada de grande importância para a manutenção da família patriarcal9, na medida em que impede a atribuição da qualidade de filho legítimo a quem não possui vínculo de consanguinidade. Nesse sentido, a verdade biológica da filiação é identificada pelo vínculo genético existente entre pais e filhos, ou seja, a qualidade paterna ou materna é atribuída apenas a quem, biologicamente, tenha gerado uma nova vida: seu filho.

Destarte, de acordo com a biologia, “pai é unicamente quem, em uma relação sexual, fecunda uma mulher que, levando a gestação a termo, dá à luz um filho”10. A prova dessa filiação é possível de ser feita cientificamente, sendo o exame de DNA o principal instrumento para a verificação da descendência genética, devido ao seu resultado se aproximar da exatidão.

Contudo, ao mesmo tempo em que o desenvolvimento da medicina científica e da biotecnologia possibilita o efetivo alcance da verdade biológica da filiação, também é responsável por sua relativização. Com efeito, são desenvolvidas técnicas de reprodução assistida, ou seja, técnicas que permitem a concepção de uma nova pessoa independentemente do ato sexual, por meio de método artificial, que supre, assim, a concepção natural, quando o futuro pai e/ou mãe tiver dificuldade ou impossibilidade de gerar um filho.

Nesse passo, são espécies de reprodução assistida: a concepção homóloga – em que é utilizado o material genético do próprio casal, sendo realizada a fecundação in vitro e, após, implantado o produto no útero da mãe –; e a concepção heteróloga – em que há a utilização de material genético de terceiro, ou seja, a fecundação em laboratório é realizada por meio da utilização de sêmen (e/ou óvulo) de outrem, sendo, assim, necessária a autorização expressa do cônjuge/ companheiro, pois a ele será atribuída a perfilhação por presunção legal.

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