Família e psicanálise: o complexo familiar na contemporaneidade
Autor | Carlos José Cordeiro/Josiane Araújo Gomes |
Páginas | 321-328 |
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É continuamente repetido nos estudos jurídicos desenvolvidos hodiernamente acerca do Direito de Família o entendimento de que a entidade familiar está a sofrer constantes transformações. Tal afirmação é construída por meio da análise histórico-social da constituição da família na sociedade ocidental, a qual indica a denominação “Direito das Famílias” como a mais adequada para exteriorizar o objeto do ramo jurídico afeto às relações familiares.
De fato, constata-se que, com o perpassar dos tempos, solidificou-se a ideia de que a família era constituída pela junção de pessoas de sexos diversos – isto é, abrangia apenas a união entre homem e mulher – e, para ser reconhecida, no mundo jurídico, era necessária sua oficialização perante o Estado. Assim, dizia-se, em tal época, que só havia família com o casamento e, por consequência, somente os filhos dele decorrentes eram tidos por legítimos, dado que prole estranha a tal instituição recebia a alcunha de espúria.
Com a promulgação da Carta Magna de 1988, especificamente em seu art. 226, tem-se a abertura para o reconhecimento de novas formações familiares, vindo à baila o instituto da união estável, que, no plano do Código Civil, também exige, para a sua constituição, o ajuntamento de seres de sexos desiguais. E, ao lado do casamento e da união estável, também surge a família monoparental,
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a qual vem a indicar a insuficiência de um rol taxativo a elencar as modalidades de entidades familiares.
Nesse passo, com o evolver da sociedade, os constitutos familiares continuam a sofrer alterações consideráveis na sua acepção, admitindo-se, inclusive, o enlace de pessoas do mesmo sexo, mesmo que restrito à modalidade de união estável.
Confira-se, a propósito, o entendimento adotado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADPF nº 132-RJ2, em que restou a seguinte ementa:
PROIBIÇÃO DE DISCRIMINAÇÃO DAS PESSOAS EM RAZÃO DO SEXO, SEJA NO PLANO DA DICOTOMIA HOMEM/MULHER (GÊNERO), SEJA NO PLANO DA ORIENTAÇÃO SEXUAL DE CADA QUAL DELES. A PROIBIÇÃO DO PRECONCEITO COMO CAPÍTULO DO CONSTITUCIONALISMO FRATERNAL. HOMENAGEM AO PLURALISMO COMO VALOR SÓCIO-POLÍTICO-CULTURAL. LIBERDADE PARA DISPOR DA PRÓPRIA SEXUALIDADE, INSERIDA NA CATEGORIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DO INDIVÍDUO, EXPRESSÃO QUE É DA AUTONOMIA DE VONTADE. DIREITO À INTIMIDADE E À VIDA PRIVADA. CLÁUSULA PÉTREA. O sexo das pessoas, salvo disposição constitucional expressa ou implícita em sentido contrário, não se presta como fator de desigualação jurídica. Proibição de preconceito, à luz do inciso IV do art. 3º da Constituição Federal, por colidir frontalmente com o objetivo constitucional de “promover o bem de todos”. Silêncio normativo da Carta Magna a respeito do concreto uso do sexo dos indivíduos como saque da kelseniana “norma geral negativa”, segundo a qual “o que não estiver juridicamente proibido, ou obrigado, está juridicamente permitido”. Reconhecimento do direito à preferência sexual como direta emanação do princípio da “dignidade da pessoa humana”: direito a auto-estima no mais elevado ponto da consciência do indivíduo. Direito à busca da felicidade. Salto normativo da proibição do preconceito para a proclamação do direito à liberdade sexual. O concreto uso da sexualidade faz parte da autonomia da vontade das pessoas naturais. Empírico uso da sexualidade nos planos da intimidade e da privacidade constitucionalmente tuteladas. Autonomia da vontade. Cláusula pétrea.
Destarte, na contemporaneidade, verifica-se que a família homoafetiva deve ser encartada como mais uma modalidade familiar presente no seio social, o que
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corrobora a concepção de pluralidade desse instituto. E, quanto ao reconhecimento da diversidade familiar, cumpre destacar os ensinamentos da jurista Maria Berenice Dias3, nos seguintes termos:
Não, não se trata de um erro de impressão. O título de mais um volume desta coletânea é exatamente o direito das famílias. Família no plural, porque a família passou a ser um conceito plural. Não é mais constituída exclusivamente pelo casamento. Não mais serve para manter a mulher presa no recinto doméstico, para que o homem tenha certeza de que seus filhos são sangue do seu sangue. Hoje, o que identifica uma família é o afeto, esse sentimento que enlaça corações e une vidas. A família é onde se encontra o sonho de felicidade. A Justiça precisa atentar nessas realidades. O imobilismo é confortável. Não gera inquietações. Repetir o modelo que está aí, aceitar o que está posto como verdade possui outras vantagens: garante a aceitação geral, não suscita discussões, além do que, é claro, não dá o mínimo trabalho.
Dessa forma, se a junção de humanos, arrimada no desejo da felicidade, é o que constitui a baliza conceitual da família, nada mais coerente que multiplicá-la na exata dimensão da diversidade que povoa a...
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