O Direito das Famílias e a crise da autonomia do direito no horizonte humano e cultural da pós-modernidade

AutorCarlos José Cordeiro/Josiane Araújo Gomes
Páginas35-44

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Ver Nota1

I

A ocasião parece bastante favorável para a propositura de uma crítica em torno do sentido da família no atual tempo do direito. Com efeito, por referencial teórico serão invocadas algumas ideias de um dos mais destacados jusfilósofos em atividade, o professor coimbrão A. Castanheira Neves. Daí a epígrafe para este escrito, em concomitante reflexão com um de seus célebres ensaios jurídicos: Direito hoje e com que sentido? O problema actual da autonomia do direito.2Ninguém há de discordar que a problematicidade a atingir de forma radical o direito neste seu crucial momento histórico – de dúvida mesmo sobre a sua subsistência – demanda não apenas pelo seu verdadeiro sentido, como também pela possibilidade do seu sentido.3É que ao perscrutar o fundamento que lhe constitui e justifica, o direito se revela humanamente problemático.4Mas não se está referindo ao homem em qualquer de suas variadas perspectivas, senão que

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ao homem-pessoa – que se distingue pelo seu “ser pessoal”, sujeito de liberdade e de responsabilidade.5Tal problema denuncia uma profunda crise. A crise da modernidade. Aquela da autonomia do direito e do seu significado, na consumação histórico-cultural e histórico-social de um paradigma ou, ainda melhor, de seu sentido. A crise da pessoa, “uma invenção recente”, que tende a desaparecer mediante uma novel formulação, porquanto sua realidade histórico-existencial está a exigir uma profunda revisão ética.6Do homo juridicus, que nasceu com a Revolução Francesa. “[...] un individu qui a intériorisé le droit au point de le découvrir en lui-même”, na preciosa lição de Bernard Edelman.7Foi de Jean Domat (1625-1696) o intenso labor por uma sociedade moderna, que aos poucos se retirava da Idade Média. E, assim, provocando uma ruptura no pensamento jurídico, ao partir do homem para explicar o direito. Pela primeira vez, após o Império Romano, um jurista abandonava o Corpus Iuris Civilis na tarefa de ordenar o direito, no instante mesmo em que encontrava no homem a coerência interna do direito e que lhe era permitido afirmar que a natureza humana concretiza a própria legalidade.8Problema, pois, do direito no universo humano. A mais recente manifestação da autonomia do direito – o normativismo moderno e, depois, positivismo legalista – transpôs derrotada a segunda metade do século XX.9Não havia como perdurar uma normatividade dogmaticamente fechada em modo auto-referente e formal e que “por isso mesmo se alienava de uma realidade social que evoluía e assim se furtava não só aos compromissos políticos, sociais, económicos, etc., mas, sobretudo, aos problemas que essa nova realidade lhe exigia”.10A experiência seguinte, o funcionalismo jurídico, logo demonstraria ser uma escolha equivocada, pois nela o direito sacrifica a sua autonomia para assumir um papel de instrumento impulsionado por finalidades que o reclamam, mas lhe dominam.11

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As sociedades hegemônicas ocidentais assumiram um modelo de civilização fundado no direito. Entretanto, para Nuno Coelho, este não se apresenta como resposta universal aos conflitos emergentes da convivência humana, mas uma possibilidade de resposta, “a qual resulta de um esforço, de um processo de construção histórica que se confunde com a construção da própria civilização ocidental”.12

Destarte, a noção de pessoa decorre de um permanente investigar do direito pela pessoa – feição civilizacional do humano –, que “não se encontra simplesmente dada, mas que se constrói na história pela experiência deste mesmo perguntar”.13Enquanto o direito revela-se um contínuo pensamento crítico-problemático “que interroga o homem em sua experiência comunitária”,14a fim de buscar na sua validade – sentido normativo transindividual –15a busca pela justiça no intuito de superar as tensões entre autonomia e integração do indivíduo na coexistência em comunidade – ao cabo, uma busca pelo sentido do humano ali convivente.16

II
  1. Haverá lugar para a autonomia do direito na pós-modernidade? Parece possível uma resposta positiva a tal indagação, desde que a escolha entre o jusnaturalismo e o juspositivismo não se demostre a única via a percorrer.17Talvez seja decisivo assentar um terceiro gênero para o conhecimento jurídico, concretizado em uma “autopressuposição axiológico-normativa fundamentante e regulativamente constitutiva”.18

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  2. Em que ela se baseia? Quais os valores e os princípios do vigente universo cultural? Onde encontrar tais valores e tais princípios? Na experiência jurídica, “que nos oferece, na perspectiva que dissemos microscópica (a perspectiva do homem e não a de programação social), a judicativo-decisória realização do direito, ao decidir casos ou controvérsias práticas na interacção”.19Isso acabará por conduzir a uma renovada distinção entre jus (direito) e lex (lei). Que em uma normatividade pós-positivista permite concluir que o direito não é apenas norma e forma, como também intencionalidade material. E que, consequentemente, impede a reaproximação conceitual entre juridicidade e legalidade. Postula-se por uma pluridimensionalidade de elementos normativos, com ênfase decisiva nos princípios. Enfim, por uma ordem jurídica translegal (na apropriada locução de Franz Wieacker), com fulcro em uma autonomia axiológico-normativa do direito no contexto da realidade prática.203. E em que sentido? Numa sociedade marcada por profundas desigualdades sociais e sustentada sobre uma parcial estabilidade político-jurídica deve-se cogitar de uma ruptura radical. É cediço, entretanto, que uma nova objetivação da juridicidade em qualquer época reproduzirá parte da consciência jurídica anterior. De outro lado, fará surgir um específico patrimônio axiológico-normativo e jurídico.21O conjunto de princípios que remetem “ao nível da intenção essencial do direito e que na nossa contemporaneidade histórico-cultural constituem o direito como direito”.22Tudo isso a convocar pela intencionalidade que constitui o sentido do direito, promovendo ao invés da ideologia um diálogo supra-histórico. Afinal, qual esse sentido em que se deve compreender o homem nesse momento histórico e nessa cultura em que lhe foi dado viver? O “ser do homem” (ipsum esse). A pessoa enquanto máxima da existência humana. O homem-pessoa e a sua dignidade. A pessoa que é de uma só vez um ser pessoal e um ser social. A pessoa (homem real) na unidade dialética de duas relativas autonomias: a do seu eu social com um seu eu pessoal; na unidade dialética “da objectividade e da subjectividade humanas”.23

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    O encontro que desvenda o sentido e o fundamento dos direitos humanos e dos direitos fundamentais. A identidade, igualmente dialética, que designa o verdadeiro significado da paz e do bem comum. Já agora sinônimo de justiça, “a suprema axiologia da existência humana comunitária”. Esta a dimensão ética que confere ao direito o seu sentido genuíno e autônomo.24Um reclamar pela virtude: “Que o homem não se compreenda apenas como destinatário do direito e titular de direitos, mas autenticamente como o sujeito do próprio direito e assim não apenas beneficiário dele, mas comprometido com ele”.25O direito...

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