Empregados domésticos - das senzalas para a plena cidadania: nossos quase parentes e seus novos direitos

AutorCarlos José Cordeiro/Josiane Araújo Gomes
Páginas457-482

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Ver Nota1

Introdução

Visando proporcionar aos alunos do Curso de Especialização em Direito das Famílias (Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia) visão multidisciplinar sobre a temática central do curso, foram convidados professores de diversas áreas do conhecimento jurídico para integrar o corpo docente. A mim, coube tratar de assuntos relativos ao Direito do Trabalho, que, de alguma forma, se relacionassem com as questões atinentes ao Direito de Família. Os assuntos abordados foram, dentre outros, referentes à maternidade, paternidade, empregados domésticos, trabalho infantil. Ao ensejo da idealização da presente

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obra coletiva, contatada pelo Coordenador do Curso para apresentar o tema que dissertaria, a opção, entre os assuntos trabalhados em sala de aula, foi por escrever sobre os empregados domésticos2.

Chama atenção o tema, já que os empregados domésticos, como regra, não têm laços de parentesco com a família a quem prestam serviços. Contudo, a ninguém é dado negar que a relação que se forma entre esses trabalhadores e seus tomadores de serviços, muitas vezes, é mais próxima que aquela que liga entes familiares. Com os empregados domésticos dividimos o nosso dia a dia, a criação de nossos filhos, nossos hábitos alimentares e, não raro, angústias, alegrias, decepções e sentimentos, os mais variados. Então, embora não esteja inserido no conceito de família, o trabalhador que presta serviços domésticos mantém relação tão estreita com os membros da família, que entendi pertinente a escolha.

Trata-se de assunto que desagrada alguns e encanta outros, mas de que todos gostam de falar e comentar. Basta observarmos em nossas relações sociais (festas, filas de banco), que o tema surge. Todos têm algum comentário sobre sua empregada ou a de algum conhecido, amigo, parente. O relacionamento diário entre os domésticos e a família (ou equivalente) que recepciona o seu trabalho, sempre origina casos, histórias e desperta variados sentimentos. A relação empregado-patrão, em regra, importa grande carga de sentimentos, o que dificulta em alguns casos – e facilita em outros – o tratamento jurídico das questões trabalhistas, decorrentes do liame empregatício. Existe uma ambiguidade em torno dessa relação, uma vez que esses trabalhadores estão integrados ao ambiente familiar, mas, ao mesmo tempo, excluídos da família.

É uma categoria que contempla ampla gama de trabalhadores, como lava-deiras, babás, passadeiras, jardineiros, governantas, preceptores, trabalhadores agrícolas etc. As atividades inerentes à ocupação das empregadas domésticas são muito diversificadas e estão descritas na Classificação Brasileira de Ocupações (CBO3)3, sob o código 5121. Breve análise na descrição sumária das atividades desenvolvidas pelos empregados domésticos permite melhor compreender a complexidade e a intensidade das exigências atuais para o exercício da função.

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Segundo a descrição encontrada na CBO3, os empregados domésticos “preparam refeições e prestam assistência às pessoas, cuidam de peças do vestuário, como roupas e sapatos e colaboram na administração da casa, conforme orientações recebidas. Fazem arrumação ou faxina e podem cuidar de plantas do ambiente interno e de animais domésticos”. Referidas atividades exigem habilidades de administrar o trabalho rotineiro de cuidados com a casa, com a alimentação e vestuário da família.

O auxílio na administração da casa açambarca todos os seus membros e inclui tarefas de lembrar os compromissos de cada um, controlar datas e realizar pagamento de contas, verificar necessidade de compras. A cada dia novos afazeres são integrados ao já extenso rol de atribuições da categoria. Os avanços sociais não se faziam notar na mesma proporção e os empregados domésticos eram vistos como uma categoria desvalorizada social e economicamente, se comparados a outras categorias profissionais.

Na presente data (02/04/2013), foi promulgada a Emenda Constitucional no 72/2013 (PEC das Domésticas), alterando de forma significativa o cenário jurídico referente aos domésticos. O presente artigo tem por objetivo mostrar, de forma rápida, a evolução dos direitos dos domésticos e analisar as principais alterações ditadas pela Emenda Constitucional mencionada e, com isso, desafiar o leitor a pensar sobre os impactos da nova legislação na relação entre empregados domésticos e seus tomadores de serviço. Objetiva, também, demonstrar que a natural efervescência decorrente da promulgação da EC 72/2013 será naturalmente equilibrada pela jurisprudência, que se encarregará de harmonizar essa relação de trabalho, com tantas singularidades e caráter tão marcadamente familiar.

1 Legislação aplicável aos domésticos antes da constituição de 1988

A Consolidação das Leis do Trabalho (doravante, apenas CLT) representa a reunião de leis trabalhistas aplicáveis aos trabalhadores em geral. Encontra-se estruturada em onze partes (títulos), a saber: I) Introdução (arts. 1º ao 12); II) Normas Gerais de Tutela do Trabalho (arts. 13 ao 223); III) Normas Especiais de Tutela do Trabalho (arts. 224 ao 441); IV) Contrato Individual do Trabalho (arts. 442 ao 510); V) Organização Sindical (arts. 511 ao 610); VI) Convenções Coletivas de Trabalho (arts. 611 ao 625); VII) Processo de Multas Administrati-

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vas (arts. 626 ao 642); VIII) Justiça do Trabalho (arts. 643 ao 735); IX) Minis-tério Público do Trabalho (arts. 736 ao 762); X) Processo Judiciário do Trabalho (art. 763 ao 910); e XI) Disposições Finais e Transitórias (arts. 911 ao 922). No seu art. 7º, alínea a, exclui expressamente os empregados domésticos do seu âmbito de aplicação, exceto naquilo expressamente estabelecido em sentido contrário. Veja o dispositivo mencionado, verbis:

Art. 7º – Os preceitos constantes da presente Consolidação, salvo quando for, em cada caso, expressamente determinado em contrário, não se aplicam:
a) aos empregados domésticos, assim considerados, de um modo geral, os que prestam serviços de natureza não-econômica à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas; [...]

Da edição da CLT (1943) até a publicação da Lei nº 5.859 (1972), os empregados domésticos permaneceram praticamente em limbo jurídico, sem direito sequer ao salário mínimo ou mesmo ao reconhecimento previdenciário do tempo trabalhado4.

A Lei nº 5.859, de 11 de dezembro de 1972, estabeleceu o conceito jurídico de empregado doméstico e concedeu à categoria: férias anuais remuneradas, anotação na Carteira de Trabalho e Previdência Social – CTPS e inscrição obrigatória no órgão previdenciário. Em 1973, o Decreto nº 71.885 regulamentou a Lei nº 5.859/72 e determinou aplicação aos empregados domésticos do capítulo relativo às férias, da CLT – restringindo, entretanto, a apenas 20 dias por ano o direito ao gozo de férias.

Já no final da década de 1980, pelo Decreto nº 95.247/87, os empregados domésticos passaram a ter direito ao vale transporte.

Este era o panorama jurídico atinente aos domésticos quando foi promulgada a Constituição Federal de 1988.

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2 Constituição federal de 1988

Com a promulgação da Carta Magna de 1988, e considerando a legislação até então aplicável aos domésticos, houve significativa ampliação de seus direitos5, estabelecidos no parágrafo único do seu art. 7º:

Art. 7º – São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
Parágrafo único – São assegurados à categoria dos trabalhadores domésticos os direitos previstos nos incisos IV, VI, VIII, XV, XVII, XVIII, XIX, XXI e XXIV, bem como a sua integração à previdência social.

O art. 7º elenca em 34 incisos os direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, dos quais estendeu apenas nove aos empregados domésticos. São eles: salário mínimo, irredutibilidade do salário, décimo terceiro salário, repouso semanal remunerado, férias, licença à gestante, licença paternidade, aviso prévio proporcional ao tempo de serviço e aposentadoria.

O tratamento diferenciado ofertado aos trabalhadores domésticos, pelo constituinte, justifica-se em alguns casos. Há direitos previstos para os trabalhadores em geral que não se aplicam ao trabalho doméstico pela própria natureza da ocupação, a exemplo de participação nos lucros e resultados ou proteção em face da automação. Contudo, relativamente a outros direitos, não se compreende a visão do legislador constituinte. Não foram assegurados ao trabalhador doméstico, dentre outros, os seguintes direitos: jornada de trabalho limitada a oito horas diárias ou 44 horas semanais6; descanso em dias feriados; Fundo de Garantia

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por Tempo de Serviço – FGTS; estabilidade no emprego, inclusive pós-parto; Programa de Integração Social (PIS); salário-família; auxílio-acidente; seguro-desemprego; adicional de hora noturna, insalubridade ou periculosidade, redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança; direito contra a discriminação e contra a diferença de salário por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil.

Apenas para ilustrar, a falta de limite de jornada remetia para o bom senso do contratante, para a necessidade do contratado e para a capacidade de negociação entre as partes, o número de horas trabalhadas pelo doméstico. Mesmo sendo o local de trabalho (residência) espaço onde vários acidentes ocorrem (quedas, queimaduras etc.) – e, em regra, são acidentes pouco visíveis para a comunidade em geral –, a ausência de normas de segurança, saúde e higiene, fazia com que nesse tipo de ocupação os acidentes fossem vistos como normais e sustentava a...

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