Pessoa idosa no Direito de Família

AutorCarlos José Cordeiro/Josiane Araújo Gomes
Páginas251-264

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Ver Nota1

1 Noções gerais

Este artigo objetiva tratar dos aspectos jurídicos a respeito de algumas situações jurídicas existenciais e patrimoniais que envolvem a pessoa do idoso no Direito de Família brasileiro. Qualquer análise jurídica acerca do idoso deve considerar o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana na ordem jurídica brasileira, já que a Constituição Federal impõe ao Estado, à sociedade e a todas as demais pessoas humanas que observem e promovam a dignidade da pessoa idosa. Tal observância se justifica não apenas na função defensiva do referido princípio – a dignidade como limite imposto ao exercício e prática de certos atos e atividades que lhe podem ser contrárias, inclusive estatais –, mas também na função prestacional como tarefa, promoção e efetivação de uma vida digna para a pessoa com idade mais avançada2.

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No segmento do Direito de Família, especialmente em decorrência da vulnerabilidade relacionada a determinados integrantes da família em sentido amplo no parentesco, devem ser analisadas algumas questões referentes ao idoso. No contexto atual do Direito Civil brasileiro, reconhece-se a presença da cláusula geral de tutela da pessoa humana que, alicerçada no valor e princípio fundamental da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inciso III, da Constituição Federal), se fundamenta, entre outros aspectos, na vulnerabilidade que é inerente às pessoas humanas, sendo que em alguns casos, tal vulnerabilidade é exacerbada, daí a necessidade de uma tutela diferenciada.

Nos termos do art. 230, da Constituição Federal de 1988, “a família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida”. Trata-se de norma inovadora, eis que ausente nos textos das Constituições brasileiras anteriores a 1988. E o § 1º, do mesmo art. 230, estabelece que “os programas de amparo aos idosos serão executados preferencialmente em seus lares”. A Declaração Universal dos Direitos do Homem proclama o direito à segurança na velhice, como lembra a doutrina3.

Heloisa Helena Barboza identifica a existência do princípio do melhor interesse do idoso na Constituição Federal como consectário natural da cláusula geral de tutela da pessoa humana, que atua como fonte da proteção integral que é devida ao idoso4. Sabe-se, na contemporaneidade, que o grande desafio não é mais a proclamação dos direitos fundamentais em atos normativos internacionais (Convenções e Tratados em matéria de Direitos Humanos) e internos (Constituição Federal, leis complementares e leis ordinárias), de modo a reconhecer a tutela integral e privilegiada da pessoa humana nas suas relações existenciais, mas sim a criação de mecanismos de sua efetivação e concretização, adequando-os a cada momento histórico e dinâmico da vida de cada pessoa.

No período áureo do liberalismo econômico e do voluntarismo jurídico, revelava-se a ausência simultânea de normativa e de instrumentos de concretização da tutela das pessoas humanas mais vulneráveis no âmbito das relações privadas. Ainda que houvesse a enunciação dos princípios da liberdade e igualdade formal,

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não se reconhecia a existência de mecanismos para equilibrar as várias relações jurídicas, especialmente no campo patrimonial, gerando desigualdades sociais e econômicas evidentes diante dos jogos de poder existentes na sociedade. No curso do século XX, houve movimentos vários no sentido da igualdade material, sendo que a garantia da igualdade de todos perante a lei ganhou consistência com a proteção especial das pessoas “desiguais” – assim consideradas aquelas em razão da situação existencial ou patrimonial peculiar em que se encontravam –, daí a paulatina tutela ao consumidor, à criança e adolescente, e a vários integrantes de grupos minoritários, como os doentes, os portadores de necessidades especiais, transexuais, homossexuais, entre outros5.

Assim, a temática da proteção às minorias ganhou extrema relevância e atualidade, especialmente diante da presença de uma característica comum às pessoas integrantes de tais grupos: a vulnerabilidade. A UNESCO, por exemplo, já declarou ser duvidoso que um grupo numericamente inferior ao resto da população seja considerado minoria, pois em alguns casos a maioria da população é de fato uma minoria sociológica, devendo ser levada em conta a distribuição do poder e a quem corresponde a faculdade de tomar decisões a respeito dos direitos das minorias6. Alessandro Pizzorusso, por exemplo, sustenta que a noção de minoria deve conter dois elementos essenciais: a) aqueles que pertencem à minoria formam sempre um grupo social; b) tal grupo apresenta, no âmbito da comuni-dade estatal, uma posição de inferioridade7.

Como já se afirmou, “o termo minoria deve ser reservado aos grupos sociais que, independentemente de sua expressão numérica, encontram-se qualitativamente em situação de desigualdade, por razões sociais, econômicas ou técnicas, grupos sujeitos à dominação de outros grupos prevalentes”8. Tal noção conceitual abarca alguns aspectos de suma importância na identificação das minorias:
a) irrelevância do número de pessoas que a integram; b) seus integrantes estão qualitativamente em situação de inferioridade, no tema da (des)igualdade; c) a

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desigualdade se fundamenta por razões sociais, econômicas ou técnicas; d) os grupos minoritários estão sujeitos à dominação por outros grupos.

Diante da necessidade de efetivação do princípio da igualdade material, por meio da cláusula geral de tutela da pessoa humana, há fundamento que legitima a proteção especial e diferenciada qualitativamente em relação às minorias, como tem ocorrido com as denominadas ações afirmativas, entre elas a edição de leis especiais voltadas à proteção dos grupos vulneráveis. No Direito brasileiro, o consumidor, desse modo, é protegido especialmente pelo Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078/90), tal como a criança e adolescente, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90).

O avanço do capitalismo e a influência de seus valores nas sociedades do Ocidente, em especial, passaram a atribuir prevalência da tutela e proteção a fatores e bens materiais do que à pessoa humana, aí incluída a pessoa do idoso. Devido à lógica capitalista de que o idoso não tem mais condições de ser economicamente produtivo, houve início e desenvolvimento do processo cultural de desprestígio à velhice, sendo o idoso considerado “algo descartável, improdutivo, incompetente”9.

Logo, constata-se que o idoso se insere na noção de integrante de grupo vulnerável, contando com reconhecimento constitucional no Direito brasileiro (arts. 229 e 230, do texto de 1988), o que gerou a necessidade da edição de normativa especial de modo a buscar efetivar a proteção e tutela especial em favor do segmento dos idosos.

2 Estatuto do idoso

Após o advento da Constituição Federal de 1988, sobreveio a Lei nº 8.842/94, instituidora da Política Nacional do Idoso, passando a assegurar alguns direitos sociais ao idoso, de modo a permitir e promover sua autonomia, integração e participação efetiva na vida em sociedade. De se notar, por exemplo, os abusos praticados nos contratos cativos e de longa duração, especialmente relacionados ao seguro-saúde, plano de saúde, em que os bens jurídicos em questão representavam a própria vida e a saúde dos idosos.

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Em observância a tal diretriz, reconheceu-se, em julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, dever de cooperar dos planos de saúde com os consumidores de mais idade, além do direito do idoso à manutenção do vínculo contratual, com afastamento das cláusulas de barreira, e do direito à informação acerca das faixas etárias e aos reajustes aplicados, no sentido da tutela das legítimas expectativas dos consumidores em contratos dessa natureza, apesar da mudança de idade e das faixas etárias10.

A Lei nº 10.741/2003 – conhecida como Estatuto do Idoso – foi editada para tratar de vários aspectos relacionados à condição jurídica do idoso. A respeito do critério para identificar a pessoa do idoso, o Estatuto do Idoso optou pelo critério etário (ou cronológico) – ou seja, a idade de 60 (sessenta) anos (art. 1º). A esse respeito, são apontados, doutrinariamente, os critérios cronológico, psicobiológico e econômico-social. O cronológico é aquele que se vincula à idade – critério etário para definição acerca de quando a pessoa atinge a faixa idosa11.

O critério psicobiológico se vincula à condição psicológica e fisiológica de cada pessoa, considerada na sua individualidade, atrelando-se a exame clínico-psico-psiquiátrico individualizado. Finalmente, o critério econômico-social leva em consideração aspectos relacionados ao patamar social da pessoa, com base na noção de que o hipossuficiente precisa de maior proteção quando comparado ao auto-suficiente.

Reconhece-se que o Estatuto do Idoso constitui-se um microssistema legislativo que consagra normas de várias naturezas, de modo a permitir a concretização das prerrogativas e direitos dos idosos não apenas na família, mas também na sociedade e perante o Estado. Há, desse modo, normas de Direito Civil, Direito Administrativo, Direito Processual Civil e Direito Penal, o que representa técnica legislativa mais consentânea com os novos tempos. De se notar que de maneira bastante semelhante com o ECA, o Estatuto do Idoso também prevê os casos em que o idoso se encontra em situação de risco. Trata-se da regra contida no art. 43, do Estatuto, que prevê a aplicação das medidas de proteção ao idoso quando seus direitos forem ameaçados...

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