Amparo Assistencial x Interdição Civil: O Que Isso Tem a Ver com Igualdade de Condições e/ou Proteção da Pessoa com Deficiência?

AutorDiego Henrique Schuster
Páginas151-157

Page 151

Diego Henrique Schuster 1

"Uma bala perdida encontra alguém perdido Encontra abrigo num corpo que passa por ali E estraga tudo, enterra tudo, pá de cal Enterra todos na vala comum de um discurso liberal"

(Humberto Gessinger)

1. Introdução

O julgador, muitas vezes, enxerga e vai longe em sua decisão, mas não sabe o que ocorre depois do seu trânsito em julgado (do lado de fora do processo) e, por isso, não perde tempo averiguando os possíveis estragos que suas decisões podem causar em outros âmbitos da existência do jurisdicionado, alheio ao seu.

Assim, o ato de julgar não pressupõe apenas quantidade de conhecimentos, mas qualidade e sensibilidade. Por mais trivial que possa parecer determinadas questões envolvendo o amparo assistencial — trivialidade que deixa entrever aquelas decisões padrões —, estas se vinculam a assuntos graves, como é a interdição civil, colocando em debate diferentes formas de se entender a finalidade do benefício assistencial e os direitos humanos.

Num sentido não numérico, o que se pergunta é: seria possível ao juiz condicionar a implantação do benefício assistencial com a ação de interdição civil? A deficiência física de longo prazo, que impossibilita a pessoa de participar de forma plena e efetiva na sociedade, em igualdade de condições com as demais pessoas, justifica (sempre) a interdição civil? A deficiência física está no mesmo nível da deficiência mental, intelectual ou sensorial? A regência de si mesmo e de seus bens não pressupõe apenas discernimento e desenvolvimento mental completo? A interdição civil não potencializa (desnecessariamente) a situação de risco a partir de uma exclusão oficializada?

Estas e outras questões tangenciam o problema de pesquisa, mesmo não cabendo (por serem complexas) nas pretensões limitadas deste artigo.

2. Considerações sobre o amparo assistencial (LOAS): "piloto automático não leva a lugar nenhum" (HG)

Antes de dar início à minha própria argumentação, gostaria de passar em revista, embora de maneira sumária, uma ideia sobre o conceito de assistência social e os requisitos (específicos) do benefício assistencial ao idoso e à pessoa com deficiência (BPS/LOAS), com especial atenção para a noção de deficiência, a fim de bem demarcar as fronteiras e proposições deste trabalho. A assistência social visa proteger aqueles que não possuem renda para a própria subsistência ou família que os sustente, sendo o benefício assistencial o modo mais específico de implementação das iniciativas do Poder Público e da sociedade em favor das pessoas (não seguradas da Previdência Social) portadoras de deficiência e aos idosos (com mais de 65 anos de idade).2

Page 152

A maioria dos ensaios que abordaram esse assunto se limita a reproduzir os termos da lei. O portador de deficiência é o "incapacitado para a vida independente e para o trabalho" (Lei n. 8.742/93, art. 20, § 2º, redação original). É o "incapacitado para a vida independente e para o trabalho em razão de anomalias ou lesões irreversíveis de natureza hereditária, congênitas ou adquiridas, que impeçam o desempenho das atividades da vida diária e do trabalho" (Decreto n. 1.744/95, art. 2º, II). A pessoa portadora de deficiência é "aquela incapacitada para a vida independente e para o trabalho, em razão de anomalias ou lesões irreversíveis de natureza hereditária, congênitas ou adquiridas, que impeçam o desempenho das atividades da vida diária e do trabalho" (Resolução INN/PR n. 435/97).

Considera-se deficiência "toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatómica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano" (Decreto n. 3.289/99, art. 3º, I). E assim por diante.

É bem verdade que, com a redação atribuída pela Lei n. 13.146/2015, o legislador lançou nova luz sobre a conceituação da pessoa com deficiência, por exigir o impedimento de longo prazo "de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas" (atual redação do art. 20, § 2 , da Lei n. 8.743/93). O que mais perto interessa à problemática, portanto, é o fato de o conceito atual exigir que o impedimento de longo prazo interfira na participação em sociedade do indivíduo, ou seja, "a incapacidade profissional não é mais o ponto central para a definição da deficiência".3

Não obstante, as decisões dos tribunais salientam um conceito de deficiência intimamente ligado ao impedimento efetivo ou potencial para o exercício de atividade que garanta a própria subsistência,4 sendo que a parte mais polêmica na jurisprudência diz respeito à desnecessidade de a incapacidade ser definitiva, visto que este critério não se encontra na lei, bem assim independente de auxílio não económico de outrem.5 Nada ou pouco se escreveu, no âmbito jurídico, sobre a interdição civil da pessoa como óbice à concessão e/ou levantamento do valor do benefício assistencial, sobretudo, na perspectiva de que o portador da deficiência é aquele com "dificuldade de se relacionar, de se integrar na sociedade". Seja como for, o julgador forense vem exigindo a interdição civil em tão grande número que não se pode falar em casos isolados, mas sim de uma prática disseminada no espaço tempo. Nesse sentido:

[...]. Intime-se, novamente, a parte autora para que, no prazo de 10 dias, junte termo de curadora em nome de [...], devidamente confeccionada em processo de interdição, uma vez que há indicação de que o autor é totalmente incapaz de praticar atos da vida civil, sob pena de indeferimento da petição inicial, na forma do art. 321 do CPC, e consequente extinção do feito, sem resolução do mérito, na forma do art. 485, I do CPC.

É de se ver que o juiz "ameaça" indeferir a petição inicial com fundamento no art. 321 do novo CPC. Mas qual seria o requisito da petição inicial não preenchido e/ou o defeito e irregularidade capaz de dificultar o julgamento do mérito? A interdição civil é uma espécie de questão prévia, questão prejudicial, na medida em que deve ser apreciada antes da questão principal? Ela é uma questão prévia que prejudica, isto é, que interfere no deslinde da questão principal? O termo de curatela

Page 153

expedido pelo Juízo Estadual dispensa a perícia médica e assistencial nos autos da ação de concessão de amparo assistencial? A prova de que a deficiência impossibilita a pessoa de participar de forma plena e efetiva na sociedade, em igualdade de condições com as demais pessoas, não pode ser realizada nos autos da ação de concessão de amparo assistencial?

No mesmo sentido:

Ante a constatação da incapacidade civil da parte autora, intime-se o procurador desta para, no prazo de 60 (sessenta) dias, providenciar junto ao juízo competente (Justiça Estadual) as medidas necessárias à promoção da interdição e à constituição de curador à parte demandante.

A fim de possibilitar o levantamento dos valores depositados neste feito, deverá ser apresentado o termo de curatela expedido pelo Juízo Estadual, bem como, se ainda não estiverem juntado aos autos, nova procuração da parte, representada por seu curador, outorgando poderes ao procurador constituído neste feito, CPF e Identidade do curador e a indicação da agência onde pretende realizar o saque da importância a receber.

Do ponto de vista do benefício assistencial, não digo que isso é ruim. Digo, simplesmente, que é assim. Aqui se reconhece a preocupação com o portador de deficiência, no sentido de constituir um curador (provisório) para reger, defender e administrar os seus bens, neles compreendidos os valores do benefício assistencial. Afinal, a ausência de discernimento pode levar um viciado, por exemplo, não apenas à ruína económica. Agora, diante das várias interpretações que a expressão "incapacitado para a vida independente e para o trabalho" comporta, exatamente, em razão das diversas categorias e graus de deficiência, como é medida a (des)necessidade de interdição civil da pessoa, — se é que ela pode ser exigida? Nos autos do processo 5013529-70.2011.4.04.7112/RS, a juíza dispensou a nomeação de curador com fundamento no laudo pericial, no qual o médico perito atestou apenas a existência de deficiência física:

Peticiona a parte autora requerendo a dispensa da apresentação de termo de curatela haja vista que não há incapacidade para os atos da vida civil, mas apenas para as atividades da vida diária em face das limitações físicas (evento 53).

Depreende-se do laudo pericial que a autora está acometida de paraplegia espástica e doença desmielinizante do sistema nervoso central, não especificada. Em resposta aos quesitos o médico perito atestou:

[...] o) Encontra-se o (a) autor(a) incapacitado(a) para os atos da vida independente, compreendendo-se esses como a aptidão para, sem auxílio de terceiros, vestir-se, alimentar-se, locomover-se e demais tarefas da vida cotidiana? Sim.

p) O autor necessita de acompanhamento ou auxílio permanente de terceiro para realizar as tarefas da vida cotidiana? Desde quando? Sim. Dezembro de 2008. [...]

Diante disso, verifica-se a existência de incapacidade física, porém não há relato quanto à inaptidão para os atos da vida civil.

Menciono essa decisão como testemunho pessoal de que, via de regra, é exigida a interdição civil sempre que, no laudo pericial, constar um "sim" para a questão sobre a existência de "incapacidade para os atos da vida civil", cabendo ao advogado convencer o julgador do contrário. Cumpre perguntar: a "rotinização"...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT