Perícia Biopsicossocial: O Bom Exemplo que Vem da Lei Orgânica da Assistência Social

AutorJosé Ricardo Caetano Costa - Marco Aurélio Serau Jr.
Páginas158-168

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José Ricardo Caetano Costa1

Marco Aurélio serau Jr.2

1. Introdução

Passados quase três décadas da vigência da Lei Orgânica da Assistência Social já possível fazermos alguns balanços e lançarmos algumas constatações. As críticas são muitas, mas é necessário que seja ressaltado um ponto extremamente significativo em prol da Assistência Social: a avaliação conjunta pericial, envolvendo Médicos e Assistentes Sociais na dinâmica da concessão/manutenção do único benefício de prestação continuada constante na Lei n. 8.742/93.

Trata-se da perícia biopsicossocial, procedimento no qual os médicos lançam seus laudos específicos dentro de suas habilidades e os Assistentes Sociais avaliam os demais aspectos que indicam a incapacidade duradoura (acima de dois anos), dos candidatos à concessão do BPC da LOAS. Estes últimos critérios, por sua vez, podem ser a grosso modo traduzidos como sociais, económicos, psicológicos, atitudinais e ambientais. Somente os Assistentes Sociais, como veremos, podem emitir estes pareceres e laudos sociais.

A introdução deste novo modelo pericial, portanto, ocorreu a partir de dois documentos fundamentais: a um, a International Classification of Functioning, Disability and Health, denominada em Português por CIF (Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde), de maio de 2001 e, a dois, a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, da ONU, ratificado pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo n. 186, de 9.7.2008 e promulgadas pelo Decreto n. 6.949, de 25.8.2009).

Julgamos que este novo modelo pericial deva ser ressaltado como positivo, por sua vez, diante da necessidade da adoção desta sistemática quando da concessão dos demais benefícios constantes no RGPS, mormente em se tratando dos auxílios--doença e aposentadorias por invalidez (COSTA, 2018). Esta possibilidade restou mais evidente quando o Estatuto dos Deficientes (Lei n. 13.146/15), elegeu a perícia biopsicossocial como forma de verificação da denominada incapacidade duradoura (conforme art. 2 , inc. 2 desta Lei).

A abordagem que faremos dessa questão nos próximos cinco tópicos leva em consideração, como premissa implícita a ideia de que o direito à assistência social, em particular o direito ao BPC é direito fundamental material, posto que ligado necessariamente à dignidade da pessoa humana (SERAU JR., 2009).

2. O significado da perícia médica

Foi partindo do pressuposto que o Magistrado não conhece toda a matéria ou realidade que lhe é apresentada, diante do caso concreto que se descortina à sua frente, foi cunhado o art. 145 do CPC, possibilitando ao Juiz a escolha de um expert que lhe auxiliará nessa compreensão.

Muito embora seja cediço que o Magistrado não fica adstrito ao laudo apresentado pelos peritos (art. 436 do CPC), a perícia é de suma importância para a formação de sua convicção e posterior tomada de decisão.

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Podemos afirmar, portanto, que "Perícia é a pesquisa, o exame, a verificação, para mostrar o fato, quando não há meio de prova documental para tanto. Por suas habilidades e conhecimentos, o perito tem condições de esclarecer os fatos ou o assunto, com o objetivo de propiciar uma solução justa e verdadeira da contenda" (SILVA, 1990, p. 352).

Em obra coletiva organizada por José Antonio Savaris (2011), de leitura obrigatória a toda à comunidade que lida com as questões periciais, o eminente jurista assevera que o perito, além de deter os conhecimentos técnicos e específicos da medicina, deve "ter ciência de que sua manifestação não terá sentido se desprezar o universo social e a história de vida da pessoa examinada" (SAVARIS, 2001, p. 9), somente assim, continua, "identificar as reais condições que uma pessoa tem de desempenhar uma atividade profissional digna e que não lhe custe o agravamento do seu quadro de saúde" (idem).

A prova pericial, por sua vez, "é o meio (de prova) empregado nos casos em que o esclarecimento do fato probando depende de conhecimentos técnicos ou científicos específicos ou ainda habilidade ou experiência diferenciada" (FERREIRA, 2012, p. 230).

Em se tratando das ações que buscam a concessão de benefícios em que a incapacidade/invalidez/deficiência dos autores/segurados, por meio dos auxílios-doenças (comuns e acidentários), aposentadorias por invalidez (idem) e dos auxí-lios-acidentes, ou dos benefícios assistenciais, a Perícia Médica Judicial passou a ser determinante na tomada de posição do Juízo.

Este procedimento, relativo à Perícia Médica, ganhou novos contornos nas ações em que os peritos médicos passaram a ser designados como auxiliares do Juízo. Podemos afirmar que eles se empoderaram e suas conclusões passaram a ser determinantes no binónimo procedência/improcedência.

Para compreender esse apoderamento, buscamos em Annie Thébaud-Mony, pesquisadora francesa, ancoragem na percepção que teve da França e de outros países europeus, alegando que

"...a história da saúde ocupacional é muito desconhecida. Até o fim do século XIX, ela é principalmente uma questão de lutas, individuais e coletivas, dos trabalhadores para não morrer no trabalho. Por um lado, o desenvolvimento dos saberes médicos, clínico e epidemiológico sobre os efeitos patogênicos do trabalho de soluções técnicas de prevenção vai retirar a saúde ocupacional da mão dos trabalhadores para colocá-la na mão dos peritos que se referem a um saber técnico que os empregadores mesmos contribuirão a criar." (THÉBAUD-MONY, 2005, p. 94-95)

Segundo esta mesma autora, a subjetividade e a experiência dos trabalhadores, nesse contexto, são totalmente desprezadas, impondo-se o que denominou de "ditadura das estatísticas: o que não se pode medir não existe" (THÉBAUD-MONY, 2005, p. 94).

Dentre nós, a Perícia Médica foi construída calcada em números, análises quantitativas e etiológicas, como se o que interessasse fossem somente os corpos e as articulações dos músculos dos trabalhadores/segurados. Se o corpo apresenta problemas, é caso de incapacidade para o trabalho.

Veremos, adiante, quais as consequências desta compreensão, até então vigente, seja na perícia administrativa, seja na judicial, apresentando alternativa que supere essa concepção que não consegue mais dar conta da realidade atual.

3. A contribuição da CIF/2001 da OMS e a convenção internacional das pessoas portadoras de deficiências, da ONU, de 2007

No rumo que estamos seguindo já é possível dizer que o ato pericial não pode se esgotar somente na avaliação das funções e estruturas do corpo. Estas, diga-se, são facilmente avaliáveis por meio de uma perícia médica.

Ocorre que o conceito de incapacidade e de deficiência sofreu uma significativa alteração no último decênio, notadamente a partir de 2001 quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) emitiu a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade E Saúde (CIF).

O fundamento desta classificação, que deve ser vista conjuntamente com a CID-10, vez que esta fornece um modelo etiológico das condições de saúde, repousa na fixação dos critérios de avaliação fundados em dois domínios: funções e estruturas do corpo e atividades e participação (CIF-CJ, 2011, p. 35).

Quiçá o maior mérito da CIF-2001 é ter agregado outros elementos, relacionados ao estado de saúde, dando outro enfoque ao que se denomina de incapacidade e deficiência. Como registra a CIF-2011, "duas pessoas com a mesma doença podem ter níveis diferentes de funcionamento, e duas pessoas com o mesmo nível de funcionamento não têm necessariamente a mesma condição de saúde" (CIF-2011, p. 35).

Vejamos os domínios da saúde e os relacionados à saúde, a partir da perspectiva do corpo, do indivíduo e da sociedade:

"(1) Funções e estruturas do Corpo e (2) Atividades e participação. Como uma classificação, a CIF agrupa sistematicamente diferentes domínios de uma pessoa em uma determinada condição de saúde (e. g., o que uma pessoa com uma doença ou transtorno faz ou pode fazer). Funcionalidade é um termo que abrange todas as funções do corpo, atividades e participação; de maneira similar, incapacidade é um termo que abrange deficiências, limitação de atividades ou restrição na participação. A CIF também relaciona os fatores ambientais que interagem com todos estes construtos." (CIF-2011, p. 35)

Por esta razão é que aconselha o uso conjunto da CID-10 com o modelo construído a partir das condições ambientais e de participação dos indivíduos. O eixo se desloca da doença para analisar a saúde. O que vale dizer que

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para sabermos se um indivíduo é incapaz é necessário que tenhamos uma visão etiológica associada ao estado de saúde: "A CIF transformou-se, de uma classificação de consequência da doença (versão de 1980) em uma classificação dos componentes da saúde." (CIF-2011)

No que refere à sua aplicação na Previdência Social, na Saúde e na formulação de políticas públicas resta afirmado que:

"A CIF é útil para uma ampla gama de aplicações diferentes, por exemplo, previdência social, avaliação do gerenciamento da assistência à saúde e estudos de população em níveis local, nacional e internacional. Oferece uma estrutura conceitual para as informações aplicáveis à assistência médica individual, incluindo prevenção, promoção da saúde e melhoria da participação, removendo ou mitigando os obstáculos sociais e estimulando a provisão de suportes e facilitadores sociais. Ela também é útil para o estudo dos sistemas de assistência médica, tanto em termos de avaliação como de formulação de políticas...

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