Critérios para Aferição da Vulnerabilidade Social Necessária à Concessão do Benefício de Prestação Continuada: A Jurisprudência do STF nas Duas Últimas Décadas

AutorAna Cláudia Mendes de Figueiredo
Páginas138-150

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Ana Cláudia Mendes de Figueiredo 1

1. Introdução

O legislador constituinte originário, atendendo ao anseio social materializado em emenda popular2, incluiu como um dos objetivos da assistência social, o de garantir um salário mínimo de benefício mensal às pessoas com deficiência que comprovem, conforme dispuser a lei, não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, estendendo esse direito aos idosos igualmente necessitados (CF/88, art. 203, inciso V).

Esse comando constitucional foi regulado pelos arts. 20 a 21-A da Lei n. 8.742, de 7 de dezembro de 1993, Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), os quais disciplinaram o Benefício da Prestação Continuada (BPC), um direito de natureza assistencial que constitui medida de discriminação positiva e de justiça social, uma vez que propicia a promoção da cidadania de pessoas com deficiência e de idosos com 65 (sessenta e cinco) anos ou mais em desvantagem socioeconómica (BONFIM, 2009, p. 165-166).

O critério financeiro/económico de elegibilidade dos destinatários desse benefício assistencial3 foi definido, desde a redação original do § 3º do art. 20 da Lei n. 8.742/1993, como sendo a incapacidade de sustento dessas pessoas por si mesmas ou de sua manutenção por parte da "família cuja renda mensal per capita seja inferior a 1/4 (um quarto) do salário mínimo"4.

Pouco tempo depois do disciplinamento do BPC pela LOAS — e antes mesmo da sua regulamentação pelo Decreto n. 1.744/1995, revogado pelo Decreto n. 6.214/2007 —, tal critério passou a ser alvo de intenso debate e acentuada judicialização.

Considerada a perspectiva, ao longo de vários anos, de elevada controvérsia no âmbito judicial a respeito do BPC, propós-se, neste capítulo, o delineamento da evolução do entendimento do Supremo Tribunal Federal a respeito de um dos vieses da controvérsia5, o atinente aos critérios de aferição da vulnerabilidade social para fins de concessão do benefício previsto no § 3º do art. 20 da Lei n. 8.742/1993, buscando identificar a lógica ínsita à concessão do benefício assistencial,

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bem como avaliar os impactos da lacuna normativa, detectada pelo STF, acerca de tais critérios.

Da necessidade de clareza e garantia desse direito para o público-alvo da proteção constitucional, entre outros fatores, decorre a importância de pensar sobre as questões articuladas no presente trabalho.

Os recortes espacial e temporal procedidos no objeto de pesquisa — as decisões proferidas no âmbito do Supremo Tribunal Federal nas duas últimas décadas — decorrem do escopo principal deste capítulo, qual seja, o de analisar a evolução jurisprudencial sobre o BPC na esfera da Corte constitucional, no referido período, mais precisamente desde 1995, quando ajuizada a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.232-1/DF, até os dias atuais.

A pesquisa jurisprudencial incidiu essencialmente sobre o portal do Supremo Tribunal Federal, na rede mundial de computadores, tendo como foco decisões em que debatidos os critérios económicos para a concessão do benefício assistencial, especialmente aquelas proferidas por seu Plenário. As palavras-chave adotadas na busca foram "benefício de prestação continuada", "benefício assistencial", "LOAS", "assistência social", "pessoas com deficiência", "idosos", "vulnerabilidade" e "critérios".

A investigação foi realizada em uma perspectiva qualitativa, uma vez que procedido o exame da fundamentação de cada uma das decisões referidas no capítulo, com vistas ao mapea-mento das modificações da compreensão do STF no interregno delimitado.

2. Breve histórico sobre o direito à assistência do Estado nos casos de vulnerabilidade social

A Declaração Universal dos Direitos Humanos assegura, desde 1948, que todo ser humano, como membro da sociedade, tem direito à segurança social e à realização "pelo esforço nacional, pela cooperação internacional e de acordo com a organização e recursos de cada Estado, dos direitos económicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade", sendo-lhe garantido também — e à sua família — um padrão de vida capaz de lhe propiciar saúde, bem-estar e direito à segurança em casos de perda dos meios de subsistência em circunstâncias estranhas à sua vontade (arts. XXII e XXV).

Na esteira da evolução dos documentos declaratórios dos direitos humanos, o Estado brasileiro fez constar, nos arts. e 194 da Lei Fundamental, o direito à assistência social, que será prestada "a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social" (CF/1988, art. 203, caput), assegurando-a, ao lado da saúde e da previdência social, mediante um conjunto de ações compreendido no âmbito da seguridade social, a qual compõe a ordem social, cujo objetivo é o bem-estar e a justiça sociais (CF/88, art. 193).

Seguindo o espírito de densificação dos direitos humanos — entre os quais os sociais —, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), ratificada pelo Brasil com valor de norma constitucional6, também assentou, em seu preâmbulo, o direito das pessoas com deficiência e seus familiares receberem da sociedade e do Estado a proteção e a assistência necessárias a tornar as famílias capazes de contribuir para o exercício pleno e equitativo dos direitos daquelas pessoas.

Em seu art. 28, a CDPD dispõe sobre o reconhecimento, pelos Estados-Partes, do direito das pessoas com deficiência a um padrão adequado de vida para si e para suas famílias e à melhoria contínua de suas condições de vida, bem como à proteção social. Afirma ser dever dos signatários, a fim de salvaguardar e promover a realização desse direito, assegurar, entre outros, o acesso de pessoas com deficiência e suas famílias em situação de pobreza à assistência do Estado em relação a seus gastos ocasionados pela deficiência e o acesso de pessoas com deficiência a programas de proteção social e de redução da pobreza.

Além de a citada Convenção salientar a necessidade de que sejam promovidos e protegidos os direitos humanos de todas as pessoas com deficiência, inclusive daquelas que requerem maior apoio, ressalta o fato de que a maioria dessas pessoas vive em condições de pobreza, o que impõe o enfrentamento das consequências negativas dessa situação.

A assistência social constitui, então, tanto consoante essa Convenção quanto consoante a Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Constituição Federal, instrumento destinado à materialização da proteção social daqueles que se encontram em situação de vulnerabilidade e risco social.

Com vistas à realização da proteção de tais pessoas — vítimas dos efeitos perversos da pobreza extrema —, o legislador infraconstitucional, ainda no início da década de 1990, editou a Lei n. 8.742/93, Lei de Organização da Assistência Social (LOAS), a qual dispõe que a assistência social é política de seguridade social não contributiva que provê os mínimos sociais conducentes à garantia do atendimento das necessidades básicas dos brasileiros e estrangeiros residentes no país7, a qual se concretiza mediante benefícios, serviços, programas e projetos socioassistenciais.

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Entre os objetivos da política assistencial8, a Lei n. 8.742/93 menciona a proteção social9 a um público especialmente vulnerável — idosos e pessoas com deficiência —, sem condições de subsistência própria ou de provimento de subsistência digna pelo grupo familiar.

Mais recentemente a Lei n. 13.146/2015 — ampliando, relativamente às pessoas com deficiência, o intuito da Lei n. 8.742/93 — estabeleceu como objetivos dos serviços, programas, projetos e benefícios, no âmbito da política pública de assistência social à pessoa com deficiência e sua família10, a garantia da acolhida, o desenvolvimento da autonomia e da convivência familiar e comunitária, para a promoção do acesso a direitos e da plena participação social (Lei n. 13.146/2015, arts. 39 e 40).

3. A evolução hermenêutica do STF acerca do BPC
3. 1 Declaração de constitucionalidade do § 3º do art 20 da Lei n. 8.742/1993
3.1.1. Ação direta de inconstitucionalidade n 1.232-1/DF

A cizânia em torno do critério de renda para a percepção do benefício de prestação continuada teve início, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, quando o Procurador-Geral da República propós, em 24.2.1995, a Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.232-1/DF, pouco tempo depois, portanto, de esse direito ter sido regulado pela Lei n. 8.742, de 7 de dezembro de 1993, Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS).

O Chefe do Ministério Público da União alegou a inconstitucionalidade do critério financeiro previsto no § 3º do art. 20 da LOAS, de renda mensal familiar per capita inferior a 1/4 de salário mínimo para fins de acesso ao BPC, por entender que essa disposição legal limita e restringe o direito garantido no art. 203, inciso V, da Constituição da República, que assegura condições mínimas de dignidade, independentemente de demonstração de...

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