A Construção de um Critério Multidimensional Psicossocial para a Configuração do BPC Assistencial

AutorJosé Ricardo Caetano Costa
Páginas169-179

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José Ricardo Caetano Costa 1

1. Introdução

A Constituição Federal de 1988 inaugura uma nova fase para os direitos sociais relacionados à seguridade, traduzidos aqui pelos direitos das três áreas que a compõe: a Saúde, a Previdência e a Assistência Social, última área da tríade da seguridade social a ser regulamentada. Foi com a publicação da Lei n. 8.742, em 1993, que se buscou organizar a assistência social, cujo único benefício de prestação pecuniária continuada, o BPC, levou outros dois anos para ser efetivamente concedido.

Essa morosidade não é a esmo. Demonstra, veladamente, a resistência na implementação desta política que busca justamente atender aos princípios mais sublimes da Carta Constitucional de 1988: a redução das diferenças sociais e o combate a pobreza.

Com efeito, se por um lado não há dúvidas de que os direitos assistenciais foram guindados à condição de sociais e fundamentais, as restrições opostas na consideração da renda familiar (inferior à 1/4 do salário mínimo), a adoção de um conceito restritivo de família (tomada emprestada do art. 16 da Lei de Benefícios), assim como o critério de deficiência, para a qual o cidadão deveria ser considerado inapto não somente para o trabalho, mas também incapaz de gerir seus atos na vida civil, tornaram o BPC assistencial alcançável para uma parcela pequena dos candidatos ao referido.

Nossa investigação, no presente artigo, restringir-se-á ao que entendemos ser o principal obstáculo para o acesso ao BPC assistencial: o critério quantitativista trazido pela LOAS de 1993, um pouco ampliado na esfera do Poder Judiciário, buscando confirmar a seguinte tese: a adoção de parcela do salário mínimo (seja inferior a 1/4, no âmbito administrativo, seja de até 1/2 salário mínimo, no judicial), descolada do caso concreto e de outros fatores não económicos, não concretiza este fundamental direito social. Ao revés, e eis aí a relevância deste estudo, o entendimento de que este benefício somente cabe aos pobres e miseráveis, leia-se aqueles desprovidos dos demais direitos, reforça o caráter assistencialista, discriminatório e estigmatizante a que vem se prestando o BPC, além de restringir o acesso de milhares de cidadãos a tão importante direito social.

Pretendemos, ainda, utilizando-nos dos aportes teóricos da filósofa Nanci Fraser, demonstrar a necessidade de, por meio de uma redistribuição de riquezas mais justa, atribuir o reconhecimento aos beneficiários desta política social, como verdadeiros partícipes da sociedade em que se encontram inseridos, sob pena de, na contramão do que entendemos por justiça social, furtar-lhes a condição de cidadãos, na acepção mais completa que esta palavra representa.

2. A assistência social no contexto brasileiro e a (não) efetivação do benefício assistencial
2. 1 Contextualização

A Assistência Social, no mundo ocidental pode ser datada: começa com a denominada Lei dos Pobres ("Poor Law", na Inglaterra, no ano de 1601), voltada à organização de "casas de trabalho", as Workhouses, embrionárias dos asilos. A Assistência era localizada por região, o que passou a criar um problema pela mobilidade dos necessitados que buscavam as paróquias com melhores condições económicas. Essa prática ficou proibida a partir do Act of Settlement (Ato de Domicilio), de 1662, que

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"proibia as paróquias de se livrarem dos seus pobres, obrigando esses mesmos pobres a não se mudarem de domicílio" (RO-SANVALLON, 1984, p. 112). Por outro lado, essa lei entrava em choque e em contradição com a necessidade trazida pelo capitalismo nesse período, qual seja, a de uma mão de obra abundante, móvel e flexível, cuja exigência de um mercado supostamente livre e autorregulável preconizava. Parece-nos que Marschall resume bem esse momento emblemático dos Direitos Sociais Assistenciais quando afirma que a "Lei dos Pobres" elisabetena pode ser compreendida como "um item num amplo programa de planejamento económico, cujo objetivo geral não era criar uma mudança essencial", segundo aponta, ela foi um "meio de aliviar a pobreza e suprimir a vadiagem"

(MARSHALL, 1967, p. 71).

Na "Poor Law" de 1834, segundo Marshall, os direitos sociais deixaram de existir e seus antigos usuários passaram a ser tratados como indigentes (MARSHALL, 1967, p. 72). Segundo as análises deste mesmo autor, estudioso profundo desse período histórico, ao lado de Polanyi, a concepção trazida por esta segunda "Lei dos Pobres" passou a delinear o que modernamente se concebeu como Assistência Social.

Com efeito, segundo esta Lei, as reivindicações poderiam ser atendidas somente se os seus usuários deixassem de ser cidadãos, o que equivale dizer que "tinha direito à Assistência quem renunciasse absolutamente a quaisquer direitos" (SCHONS, 1999, p. 73). Esta mudança trazida pela nova "Poor Law", de 1834, somente pode ser entendida se compreendido o processo de movimento dialético do capitalismo emergente com a Revolução Industrial que se desencadeava, cujos pressupostos baseados no livre mercado eram inconciliáveis com um sistema intervencionista, como o existente na primeira "Lei dos Pobres". Era necessário, neste novo momento histórico, o livre movimento dos trabalhadores em potencial, com a criação de uma nova classe trabalhadora. É justamente por isso que Polanyi afirma que a Speenhamland (1795 a 1834, quando a nova "Poor Law" revogou a primeira Lei), designa o fim de uma época e o começo de outra.2

No Brasil, somente em 1988, com a promulgação da Constituição Federal, quatro décadas após a institucionalização do Walfare State, é que se consagrou os direitos sociais, conforme consta em seu art. 6º: "São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição".

A inclusão, no rol de direitos sociais previstos na Constituição Federal de 1988, da Assistência Social como política integrante da Seguridade Social, parecia romper com a histórica concepção reducionista da assistência, já que a Carta Magna ao tempo em que reconhecia a existência de desigualdades sociais no Brasil, atribuía ao Estado e à sociedade a responsabilidade para solucioná-las, cujo avanço que mais se aproximou deste objetivo consta no seu art. 194, que cristalizava o sistema de seguridade social como "um conjunto integrado de ações de iniciativa dos poderes públicos e da sociedade, destinadas a assegurar os direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social".

O cenário, então, acenava para mudanças de ordem concei-tual e estrutural nas políticas de Assistência Social, preconizando ações contínuas e direcionadas à construção de uma sociedade justa e igualitária.

No entanto, como bem lembra Aldaíza Sposati, não basta que os direitos sociais estivessem positivados, mesmo que na Constituição Federal, asseverando que, no Brasil, verifica-se "a distância histórica entre o proposto e o posto, somada à omissão da cobrança da responsabilidade pública, leva à cultura do descrédito no disposto legal. O formal se distancia do senso comum como mundo desconexo" (SPOSATI, 1997, p. 10).

Isso porque, as conquistas então positivadas na Constituição Federal de 1988 foram marcadas por encaminhamentos paradoxais, que refletiram negativamente na consecução dos direitos. Observa-se que ao tempo em que se dava a consolidação destes como pressuposto para a edificação de uma sociedade livre, justa e solidária, as definições no campo económico internacional, em afinidade com as diretrizes da macroeconomia, obedecendo à lógica do mercado, acabaram por mitigar a realização, na prática, dos direitos recém conquistados.

Aliás, foi justamente no começo da década de 1990, com o governo de Fernando Collor de Melo, que se passou a deflagrar um processo denominado neoliberal, ainda em curso, no qual o Brasil adotou as orientações constantes na cartilha do FMI e no Consenso de Washington. (COUTO, 2014, p. 145). De forma imediata, foram (como sempre) os direitos sociais relacionados à Seguridade Social os primeiros a sofrer os maiores cortes, sempre sob o recorrente argumento do ajuste fiscal (COSTA, 2000; 2010).

Esta conjuntura, por certo, incidiu sobre todos os movimentos de regulamentação das legislações ordinárias oriundas da Constituição Federal de 1988, não sendo diferente no que respeita à Assistência Social: a cobertura das necessidades sociais da população entraria em confronto com a realidade social brasileira, passando a receber um tratamento minimalista na consolidação desses direitos sociais.

Nesse contexto, pouco auspicioso à concretização dos direitos sociais, foi promulgada a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), Lei n. 8.742/93, a qual, muito embora contenha alguns avanços em relação à concepção da Assistência enquanto um direito de cidadania, o critério de baixa seletividade proposto a partir da fixação dos requisitos para o alcance de seu único

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benefício de prestação continuada, repousa ainda no tradicional entendimento de que a Assistência deve ter como percipientes os miseráveis. (SERAU JR.; COSTA, 2015).

2. 2 O benefício de prestação continuada: ainda o assistencialismo

Com efeito, o credenciamento da...

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