ARTS. 1º AO 10

AutorGuilherme Peña de Moraes e Hélio Nascimento de Oliveira Neto
Páginas7-47
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TÍTULO I
Disposições Preliminares
Guilherme Peña de Moraes
Membro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPERJ). Professor Adjunto
da Faculdade de Direito e Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em
Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense (UFF). Professor Perma-
nente do Programa de Pós-Graduação da Universidade Veiga de Almeida (UVA).
Mestre em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de
Janeiro (PUC/RJ). Doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC/SP). Pós-Doutor em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ) e pela Fordham School of Law — Jesuit University of New York (FU/NY).
Hélio Nascimento de Oliveira Neto
Assessor Jurídico da Procuradoria-Geral de Justiça do Ministério Público do Estado
do Rio de Janeiro (MPERJ). Advogado.
Art. 1º É instituído o Estatuto do Idoso, destinado a regular os direitos as-
segurados às pessoas com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos.
O Estatuto do Idoso (EI), veiculado pela Lei 10.741/2003, é corolário do fenô-
meno da publicização do direito privado, que consiste, sinteticamente, em interven-
ção estatal na esfera particular dos indivíduos por via legislativa, fundamentada na
faceta social do Estado Democrático de Direito, projeção esta classificada pelo jurista
chileno Sergio Gamonal Contreras como eficácia diagonal dos direitos fundamentais.1
Trata-se, portanto, de atuação positiva do Estado nas relações privadas, destinada
a assegurar a observância de direitos fundamentais em prol de sujeitos de direito
presumidamente vulneráveis.
A publicização do direito privado manifesta-se, em regra, no âmbito legisla-
tivo, mas constitui, sobretudo, ingerência do Estado na relação entre particulares,
estabelecendo normas cogentes de limitação ao princípio da autonomia privada
– pedra de toque, de jaez liberal, que norteia as relações jurídicas privadas –, para
viabilizar a efetividade de direitos sociais, realizando, em última instância, o conte-
údo do princípio da igualdade – em termos materiais, portanto –, ao tempo em que
promove a construção de sociedade livre, justa e solidária, erradicando a pobreza
1. CONTRERAS, Sergio Gamonal. La Eficacia Diagonal u Oblicua y los Estándares de Conducta en el Derecho
del Trabajo. Santiago: Thomson Reuters, 2015, p. 13.
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ART. 1º
ESTATUTO DO IDOSO: COMENTÁRIOS À LEI 10.741/2003
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e a marginalização pela redução das desigualdades sociais (CRFB, art. 3º). Desta
forma, a publicização engendra disciplinas transversais entre Direito Público e
Privado,2 a exemplo do Direito do Trabalho, regulado pela Consolidação das Leis
Trabalhistas (CLT), e do Direito do Consumidor, regrado pelo Código de Defesa do
Consumidor (CDC).
A normatização encetada pelo Estatuto do Idoso equipara desigualmente os de-
siguais por critério biológico, que embasa a presunção de vulnerabilidade de pessoas
naturais com idade igual ou superior a 60 (sessenta) anos. Cuida-se de realização da
igualdade material, também denominada real ou fática, que exterioriza a igualdade
de modo efetivo perante os escopos da vida humana. Tradicionalmente, os ordena-
mentos constitucionais dispõem de três modos de implementação, identificados pelo
viés liberal, social e democrático.3 A igualdade material de matiz liberal é imanente
aos ordenamentos jurídicos franco-germânicos, consagrados em normas que pro-
íbem a prática de discriminações baseadas em critérios de origem, raça, sexo, cor e
idade.4 A igualdade material de cariz social é inerente aos ordenamentos jurídicos
nórdico-escandinavos, consignados em normas que obrigam à prestação de bene-
fícios e serviços que atendam às necessidades básicas da pessoa humana, a fim de
protegê-la de determinados riscos a que se encontra exposta.5,-6 Por fim, a igualdade
real de perfil democrático é intrínseca ao ordenamento jurídico norte-americano,
consubstanciados em normas que permitem a realização de affirmative actions, em
vernáculo, ações afirmativas, que se traduzem em políticas ou programas, públicos
ou privados, que objetivam conceder algum tipo de benefício a minorias ou grupos
sociais que vivenciem condições desvantajosas em dado contexto social, em razão
de discriminações, existentes ou passadas, tais como às pessoas portadoras de ne-
cessidades especiais, idosos, índios, mulheres e negros.7-8
A par da distinção filosófica quanto à fundamentação das ações afirmativas
– segmentada entre justiça compensatória, que as enxerga como reparação ou
2. MARQUES, Claudia Lima. Introdução ao Direito do Consumidor. In: BENJAMIN, Antonio Herman;
MARQUES, Claudia Lima; BESSA, Leonardo Roscoe (Orgs.). Manual de Direito do Consumidor. 6ª ed. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 33.
3. SILVA JÚNIOR, Hédio. Igualdade Material. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2002, p. 13.
4. LENAERTS, Koen. Constitutional Law of the European Union. London: Sweet & Maxwell, 1999, p. 111-121.
5. CHRISTENSEN, Anna. Sweedish Law in the New Millenium. Stockholm: Norstedts Juridik, 2000, p. 134-
153.
6. DAHL, Borge. Danish Law in a European Perspective. 2ª ed. Copenhagen: Forlaget Thomson, 2002, p. 299-
318.
7. TRIBE, Laurence. American Constitutional Law. 2ª ed. New York: The Foundation Press, 1988, p. 1437-
1521.
8. GRAGLIA, Lino; RAKOVE, Jack. How the Constitution Disappeared. Boston: Northeastern University Press,
1994, p. 52-78.
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ART. 1º
GUILHERME PEÑA DE MORAES E HÉLIO NASCIMENTO DE OLIVEIRA NETO
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ressarcimento dos danos causados pelas discriminações ocorridas no passado,9,-10
e justiça distributiva,11-12 que as toma como conformação da redistribuição dos
ônus e bônus entre os membros da sociedade, para viabilizar o acesso de minorias
ou grupos sociais a determinadas posições no futuro –, a doutrina estadunidense
prestigiou a teoria da justiça distributiva, “tendo sido desenvolvida a convicção de
que as ações afirmativas são necessárias não como uma compensação de minorias
ou grupos sociais por discriminações contra eles, mas como uma contribuição para
que a distribuição das posições de influência beneficie a sociedade como um todo”.13
No Brasil, a Constituição e a legislação ordinária atualizam a igualdade mate-
rial por peculiar construção sistêmica que amalgama as concepções liberal, social
e democrática. Nessa paisagem, o art. 3º, incs. I, III e IV, da CRFB, esteio constitu-
cional das ações afirmativas – ao fixar, como objetivos fundamentais da Federação,
a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza e
marginalização, a redução das desigualdades sociais e regionais e a promoção do
bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade nem qualquer outra
forma de discriminação – alude à noção liberal de igualdade. Da mesma forma, o
art. 203, incs. IV e V, da CRFB, ao prever a habilitação e reabilitação, a promoção de
integração à vida comunitária e a garantia de um salário-mínimo de benefício mensal
aos idosos e pessoas portadoras de deficiência que comprovem não possuir meio de
prover a própria manutenção ou tê-la provida por sua família, enfeixando-os como
objetivos da assistência social, realiza a concepção social de igualdade material. In
fine, o Estatuto do idoso, ao assegurar prioridade às pessoas naturais com idade igual
ou superior a 60 (sessenta) anos, com primazia de atendimento à frente dos mais
9. “Como as desvantagens competitivas são um produto de causas sociais e não naturais, o princípio da
igualdade de oportunidades exige a sua eliminação. As ações afirmativas parecem ser particularmente
adequadas para reconduzir as perspectivas de cada um ao ponto onde elas provavelmente estariam caso
não houvesse a discriminação. Sempre que alguma deficiência de meios (educacionais ou não) for atribu-
ível a uma violação de direitos, as ações afirmativas concebidas para eliminar a redução de perspectivas
de sucesso correspondente a essa deficiência de meios são por natureza compensatórias”. ROSENFELD,
Michel. Affirmative Action and Justice: a philosophical and constitutional inquiry. New Haven: Yale University
Press, 1991, p. 288.
10. Para Jules Coleman, a realização da justiça compensatória é uma questão de princípio, “não porque se
promova justiça na distribuição dos bens, mas porque se remediam injustiças no ponto de partida inicial
da distribuição de benefícios”. COLEMAN, Jules. Moral and Theories of Torts: their scope and limits. New
York: Law and Philosophy, 1983, p. 13.
11. “As ações afirmativas alteram diretamente a composição de instituições. Isto é desejável em si mesmo, por
configurar uma redistribuição de posições, com o escopo de criar uma nova realidade social, na qual, em
grau substancialmente superior ao observado no presente, as posições de relevância serão ocupadas por
minorias ou grupos sociais”. WASSERSTROM, Richard. Philosophy and Social Issues: five studies. Notre
Dame: University of Notre Dame Press, 1980, p. 54.
12. “A adoção de oportunidades especiais para extirpar certas desvantagens oriundas de injustiça pode-se
justificar como um meio de se construir uma sociedade na qual todos os indivíduos tenham parcelas mais
equitativas dos bens da vida”. SEGERS, Mary. Elusive Equality: liberalism, affirmative action and social change
in America. New York: Schochen Books, 1983, p. 31.
13. DWORKIN, Ronald. Sovereign Virtue. Cambridge: Harvard University Press, 2000, p. 121.
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