Transferência Internacional do Atleta de Futebol: Tráfico ou Mercado?

AutorBhicara Abidão Neto - Stefano Malvestio
Ocupação do AutorAdvogado. Sócio de Bichara e Motta Advogados - Advogado. Membro do ICAM-Madrid; L. L. M. in International Sports Law no ISDE - Instituto Superior de Derecho y Economia.
Páginas269-277

Page 269

Ver notas 1 y 2

1. Introdução

Honra-nos o Ministro Luiz Phillipe Vieira de Mello e Alexandre Agra Belmonte com o convite para participar desta importante obra, incumbindo-nos de tratar do tema ligado à transferência internacional do atleta, com a provocação adicional de que analisemos se tal prática se constitui em tráfico ou mercado.

Parece-nos inquestionável que, nos dias de hoje, e com o grau de profissionalização que o futebol alcançou, tenhamos um mercado de jogadores com participantes bem definidos: clubes, atletas, federações nacionais e inter-nacionais, além dos agentes licenciados.

A procura por jogadores e as impressionantes cifras envolvidas nas transações deixam clara a existência de um mercado de atletas, facilmente verificada a cada abertura das chamadas janelas de transferências.

Contudo, tal realidade muda de figura quando tratamos do atleta menor de idade, cuja transferência internacional é vedada, salvo algumas exceções que serão mais adiante analisadas, pelos regulamentos da entidade máxima do futebol mundial, a Fédération International de Football Association - (doravante FIFA).

No caso dos menores, quando as transferências não se dão de acordo com as estritas regras estabelecidas pela FIFA, quer nos parecer que estamos diante de figura que mais se assemelha com a do tráfico de menores.

2. Legislação nacional

A fim de enfrentar o tema, imperioso verificar o que dispõem os ordenamentos legais que regem a matéria, nos âmbitos nacional e internacional.

A Lei n. 9.615/1998, logo em seu art. 1º, § 1º, estabelece que a prática desportiva formal é regulada por normas nacionais e internacionais e pelas regras de prática desportiva de cada modalidade, aceitas pelas respectivas entidades nacionais de administração do desporto.

Além disso, estabelece em seu art. 28 a possibilidade de os clubes nacionais fixarem valor sem limitação para as cláusulas indenizatórias desportivas nas transferências internacionais.

Ou seja, no Brasil, a principal lei que regula a prática desportiva profissional e amadora vislumbra expressamente a hipótese da transferência internacional de jogadores, mas não enfrenta objetivamente a questão da transferência do menor.

3. Origem, razões e dimensão do problema no âmbito internacional

Do ponto de vista histórico, o problema do tráfico internacional de jogadores menores de idade se manifesta no final da década dos 1990, como efeito colateral do caso Bosman3, cuja sentença foi proferida em dezembro 1995 pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, e da consequente modificação dos regulamentos da FIFA por ela induzida, bem como, em menor proporção, pela posterior introdução, por parte da Union of European Football Associations (doravante UEFA), da assim-chamada Home-Grown rule4.

Assim, em primeiro lugar, ao abolir a assim chamada regra imposta pela UEFA do "3+2", que permitia a cada clube membro de uma federação filiada à UEFA registrar somente três jogadores estrangeiros mais dois "assimilados"5,

Page 270

um dos principais efeitos do caso Bosman foi aquele de aumentar consideravelmente o interesse dos clubes europeus na contratação de jogadores estrangeiros.

Posteriormente, a UEFA introduz, até com o intuito original de parcialmente limitar os efeitos da sentença Bosman, a regra do home-grown players, pela qual, no âmbito das competições organizadas pela entidade máxima do futebol europeu, cada equipe pode incluir um máximo de vinte cinco jogadores no plantel, dos quais pelo menos oito devem ter sido treinados por clubes que são membros da mesma associação nacional do clube pelo qual estão jogando. A UEFA exige que um jogador permaneça num clube por um período ininterrupto de três anos entre os 15 e os 21 anos, antes que ele possa se qualificar como home-grown, independentemente de sua nacionalidade.

O intuito da regra era aquele de proteger as categorias de base do futebol europeu e limitar o fluxo de jogadores estrangeiros. Porém, essa regra pareceu obter o efeito contrário, na medida em que, sendo suficiente que o jogador transcorresse três anos entre os 15 e os 21 registrado num clube da mesma associação nacional do clube que o utiliza, incitou os clubes a procurar jogadores estrangeiros de idade cada vez mais precoce, de modo que, ficando três anos registrado antes dos 21, poderia adquirir a qualificação de home-grown6.

Cumpre ressaltar que nem toda transferência internacional de um menor representa um fato negativo. Nesse sentido, por exemplo, não se pode razoavelmente arguir que a transferência internacional do atleta Lionel Messi em 2000, aos 13 anos, da Argentina à Espanha tenha sido negativa para o mundo do futebol. Foi uma transferência que se demonstrou positiva para a então criança, para seu novo clube e até para o país de origem dele, que talvez tivesse perdido a oportunidade de ter um dos melhores jogadores da história se a transferência não tivesse ocorrido. O mesmo se pode dizer para inúmeros outros casos de transferências internacionais de menores revelados com sucesso, como nos casos de Cesc Fabregas ou Gerard Piqué, para ficarmos somente no exemplo do clube espanhol Barcelona.

Porém, para cada "Messi" ou outro jogador cuja transferência internacional represente um êxito, muitos mais são os casos em que o menor, ao deixar o seu país e emigrar para um novo, acaba não satisfazendo, por várias razões, as exigências de quem parecia, num primeiro momento, estar interessado em sua contratação. Quando isso acontece desastrosas podem se revelar as consequências na vida do menor que, levado longe do próprio país e geralmente sem recurso nenhum nem capacidade de falar a língua estrangeira, acaba sendo abandonado.

Assim, estima-se que mais de 20 mil jovens oriundos da África estejam vivendo nas ruas da Europa, depois de terem sido levados para lá sob a assistência de um agente, que, ao constatar ausência de oportunidades para concluir qualquer negócio em relação ao menor, acaba abandonado-o num país estrangeiro, sem ter dinheiro ou ser regularizado7.

Diante disso, surge a necessidade de se regular a matéria, disciplinando de maneira geral o fenômeno, apesar de não poder se excluir, em princípio, que a transferência internacional do menor possa manifestar resultados positivos.

No âmbito internacional, no que pertine ao futebol, as transferências internacionais são reguladas pela Fédération International de Football Association - FIFA, mais especificamente em seu Regulamento do Estatuto de Transferência de Jogadores da FIFA (doravante também Regulamento FIFA).

Conforme visto anteriormente, tais regulamentos externos são ressalvados pela legislação pátria, e devem ser respeitados na medida em que não afrontem as normas internas e a soberania nacional.

4. Regulamentação FIFA

O aludido documento emitido pela FIFA dedica capítulo específico à transferência envolvendo atletas menores de idade, justamente em razão da preocupação com o elevado fluxo de atletas menores sendo transferidos para diferentes associações nacionais de forma irregular.

Page 271

Daí que se verifica, no capítulo VI do Regulamento do Estatuto de Transferência de Jogadores da FIFA, algumas normas regulando as transferências envolvendo menores, que passamos a destacar.

Em primeiro lugar, de acordo com primeiro parágrafo do art. 19, inserido pela FIFA pela primeira vez na edição 2005 do Regulamento, é proibida a transferência internacional do atleta menor de 18 anos. Observe-se que a FIFA não fala em maioridade, mas estabelece a idade certa de 18 anos, fazendo com que o muito utilizado recurso à emancipação do menor não seja capaz, a nosso ver, de ultrapassar o obstáculo contido no regulamento. Assim, consegue-se harmonizar também o sistema entre todas as associações nacionais, sem sujeita-lo às legislações nacionais, que poderiam estabelecer diferentes limites para a maioridade, assim gerando deformidades na aplicação da norma.

A regra acima admite algumas exceções, estabelecidas pelo § 2º do mesmo art. 19, como segue:

  1. Os pais do jogador mudem a sua residência para o país do novo clube, por razões não relacionadas ao futebol.

    Em relação a esta norma, de fácil compreensão, impõe-se uma observação: o critério sobre o qual ela se funda é a residência dos pais do jogador, e não a nacionalidade deles. Assim, por exemplo, um menor brasileiro, filho de brasileiros com residência num país estrangeiro, poderia ver seu registro negado ao voltar para o Brasil: situação paradoxal, talvez não prevista pelos redatores da norma, possivelmente solucionável através de interpretação jurisprudencial extensiva.

    Tal exceção é provavelmente a mais utilizada, sobretudo em países como Brasil, Argentina e nações do continente africano. Na prática, esta norma foi frequentemente utilizada para burlar a proibição de transferência internacional do menor; porém, veremos como a reforma introduzida pela FIFA em 2009, assim como a jurisprudência da FIFA e do CAS, conseguiram reduzir a sua utilização elusiva.

  2. A transferência ocorra no território da União Europeia (UE) ou no Espaço Econômico Europeu (EEE), e o jogador tenha entre 16 e 18 anos. Nesse caso, o novo clube deve cumprir algumas obrigações mínimas8.

    ...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT