Responsabilidade Civil dos Administradores de Entidades Desportivas Profissionais

AutorAna Frazão
Ocupação do AutorConselheira do CADE - Conselho Administrativo de Defesa Econômica. Professora Adjunta de Direito Civil e Comercial da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília
Páginas131-144

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Ver nota 1

1. Introdução

O advento da Lei n. 9.615/1998 despertou grande interesse sobre a responsabilidade civil de administradores de entidades desportivas profissionais, matéria que, de fato, tende a ser das mais cruciais deste novo ramo jurídico que vem progressivamente se estruturando: o Direito Desportivo.

Com efeito, a responsabilidade civil de administradores de entidades desportivas profissionais diz respeito a algo muito maior do que a mera compensação dos danos causados por tais agentes. Nesta seara, é significativa a ênfase que se dá aos aspectos preventivo e dissuasório da responsabilidade civil, a fim de que esta possa funcionar como um estímulo para a correta e regular gestão de tais entes.

É nesse contexto que o presente artigo procurará mostrar os principais aspectos do regime de responsabilização dos administradores de entidades desportivas profissionais, iniciando a reflexão pela natureza jurídica do cargo de administração e todas as consequências que daí resultam em termos de responsabilização. Posteriormente, o artigo tratará das regras específicas de responsabilidade previstas na Lei n. 9.615/1998 para, em seguida, contextualizá-las com as cláusulas gerais de responsabilidade civil previstas no Código Civil e com os principais entendimentos doutrinários e jurisprudenciais a respeito do tema.

Nesse percurso, como se verá, utilizar-se-á da experiência doutrinária e jurisprudencial do Direito Societário, ramo em relação ao qual a responsabilidade civil dos gestores ocupa um papel central, o qual vem sendo objeto de reflexões consistentes há pelo menos dois séculos.

Dessa maneira, um dos fios condutores da presente análise será precisamente a tentativa de adaptar a dogmática do Direito Societário ao Direito Desportivo, sempre que esta se mostrar adequada aos objetivos específicos deste último.

2. A natureza jurídica do cargo de administrador e suas principais repercussões sobre a responsabilidade civil

Antes de ingressar nos aspectos específicos da responsabilidade civil dos dirigentes de entidades desportivas profissionais, é importante destacar a natureza jurídica dos cargos de administração, aspecto do qual resultam importantes consequências práticas para efeitos da responsabilização.

Na atualidade, não há maiores discussões em torno da circunstância de que os administradores de pessoas jurídicas são órgãos e não mandatários2. Não há vontade da pessoa jurídica que não seja manifestada senão por seus órgãos. Logo, os administradores "presentam" diretamente a vontade da pessoa jurídica, sem propriamente representá-la3.

Da natureza orgânica da administração, decorrem pelo menos três importantes consequências para o regime de responsabilidade dos administradores, que serão tratadas a seguir.

2.1. A adstrição ao interesse da pessoa jurídica

Como órgãos, os administradores não podem agir em proveito próprio, até porque não exercem direitos subjetivos, mas sim verdadeiras competências ou funções, de forma que os poderes de gestão lhes são dados para o atendimento exclusivo dos interesses da pessoa jurídica4.

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Por essa razão, os administradores diferenciam-se dos sócios ou associados, que podem levar em consideração seus interesses pessoais ao exercerem suas prerrogativas, tal como ocorre no caso do direito de voto, desde que haja convergência com o interesse coletivo. De forma contrária, os administradores apenas podem agir movidos pelos interesses da pessoa jurídica, sendo-lhes vedado, em absoluto, agir em favor de si mesmos ou de terceiros.

2.2. A natureza extracontratual da responsabilidade dos administradores

Não havendo que se cogitar de mandato ou representação convencional, é inequívoco que a responsabilidade dos administradores de pessoas jurídicas é extracontratual5, o que demonstra o caráter cogente do regime legal da responsabilidade, com a consequente impossibilidade do seu afastamento ou mitigação por convenções privadas.

Consequentemente, nem mesmo a autorização prévia ou a ratificação posterior dos atos dos administradores por eventuais órgãos deliberativos da pessoa jurídica, como a assembleia geral, são suficientes para afastar a responsabilidade dos administradores, embora possam ser invocadas como atenuantes6.

Outra decorrência da natureza extracontratual da responsabilidade civil dos administradores é a de que esta pode ser invocada por todo aquele que sofrer danos injustos e diretos em virtude dos atos de gestão: a pessoa jurídica, os sócios ou associados, os empregados, os credores, os consumidores e todos os demais terceiros. No caso específico das entidades desportivas profissionais, a responsabilidade estende-se igualmente, por óbvio, aos torcedores.

Assim, as regras de responsabilização aplicam-se indistintamente para a generalidade dos ofendidos, a fim de possibilitar que todos aqueles que sofreram danos diretos causados pelos administradores possam ingressar com a cabível ação de responsabilidade.

2.3. A necessária vinculação da pessoa jurídica e a instituição de duplo regime de responsabilidade

Por serem órgãos, os administradores, ao agirem nesta condição, vinculam necessariamente a pessoa jurídica. Mesmo no plano contratual, observa-se, tanto no direito brasileiro como no direito estrangeiro, o declínio progressivo da teoria do ultra vires, a fim de se tutelar amplamente os terceiros de boa-fé. De fato, são cada vez mais restritas as possibilidades de que o administrador, com seus atos, não vincule a pessoa jurídica.

Dessa forma, a regra geral é a de que, mesmo no plano contratual, os administradores sempre vinculam a pessoa jurídica com seus atos, ainda que ajam sem poderes ou além do objeto da pessoa jurídica, salvo na hipótese de o terceiro saber ou dever saber da referida irregularidade.7 Trata-se aqui da aplicação da teoria da aparência, que não deixa de ser um reflexo da boa-fé objetiva.

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Se tal orientação é observada mesmo no âmbito das relações contratuais, com maior razão deve ser aplicada no âmbito da responsabilidade civil extracontratual. Logo, quando agem de forma ilícita, os administradores automaticamente deflagram, ao lado da sua responsabilidade pessoal, a responsabilidade da pessoa jurídica. A única exceção ocorre obviamente quando a própria pessoa jurídica é a ofendida, caso em que os administradores responderam única e exclusivamente perante esta.

Em decorrência, salvo na hipótese em que a pessoa jurídica é a lesada, a responsabilidade civil dos administradores por seus atos corresponde, como regra, a uma garantia a mais para os prejudicados pelos seus atos ilícitos. Afinal, se os administradores, como órgãos, "presentam" a pessoa jurídica e a vinculam com seus atos, a responsabilidade direta dos primeiros jamais exclui a necessária e concomitante responsabilidade da pessoa jurídica pelos mesmos atos.

Por essa razão, a responsabilidade civil dos administradores de pessoas jurídicas é uma opção a mais para os demais ofendidos que não a pessoa jurídica, os quais, em caso danos sofridos em decorrência de atos de administrador, poderá acionar (i) apenas o administrador, (ii) apenas a pessoa jurídica ou (iii) ambos8, sendo que, nas duas últimas hipóteses, a pessoa jurídica poderá ter o direito de regresso contra o administrador faltoso.

3. O regime de responsabilidade previsto pela Lei n 9.615/1998
3.1. A vedação da expropriação do patrimônio da pessoa jurídica

Esclarecido, no capítulo anterior, que o regime de responsabilidade dos administradores de pessoas jurídicas é legal e não contratual, é importante verificar o tratamento legislativo da matéria no âmbito do Direito Desportivo. No caso específico, a própria Lei n. 9.615/1998 disciplina a responsabilidade dos administradores de entidades desportivas, como se vê pelo seu art. 27, caput, a seguir reproduzido:

Art. 27. As entidades de prática desportiva participantes de competições profissionais e as entidades de administração de desporto ou ligas em que se organizarem, independentemente da forma jurídica adotada, sujeitam os bens particulares de seus dirigentes ao disposto no art. 50 da Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, além das sanções e responsabilidades previstas no caput do art. 1.017 da Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, na hipótese de aplicarem créditos ou bens sociais da entidade desportiva em proveito próprio ou de terceiros. (Redação dada pela Lei n. 10.672, de 2003)

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