Meio Ambiente Laboral Futebolístico e Responsabilidade Civil

AutorNey Maranhão
Ocupação do AutorJuiz Federal do Trabalho Substituto do TRT da 8a Região (PA/AP).
Páginas187-198

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1. Introdução

O mundo do atleta de futebol - geralmente tratado, no senso comum, com um ar fantasioso, recheado de noções ligadas à fama e ao dinheiro - contém uma dimensão pouco refletida: sua específica faceta laborativa.

Uma vez que detentora de uma estruturação fático-jurídica extremamente peculiar, as poucas tentativas de aproximação científica praticadas em direção ao contexto laboral futebolístico acabam por ser enormemente dificultadas. Mas essa missão se torna bem mais espinhosa quando o ponto de vista do intérprete volta-se à rica teoria da reparação de danos.

Neste breve texto, ousaremos dar alguns passos nesse terreno assaz pantanoso. Para tanto, abordaremos apenas alguns aspectos da temática da responsabilidade civil e suas implicações junto ao complexo mundo do atleta de futebol.

Desde logo fica o alerta: o objetivo do escrito não se volta a oferecer respostas prontas e acabadas. O escopo de qualquer incursão científica, que busca entrecruzar teoria e prática, sempre será uma empreitada marcada, ao mesmo tempo, pela ousadia e cautela, pela ânsia de compreender e pela humildade de respeitar. Eis o espírito que norteou este breve arrazoado, do início ao fim.

Cuida-se, aqui, portanto e por ora, de um punhado de pequenas reflexões, a merecer prosseguimento investigatório, lançando luz sobre um tão específico e muitas vezes negligenciado campo da vivência juslaboral.

2. Necessário alicerce teórico: meio ambiente laboral futebolístico e proteção da pessoa humana enquanto atleta de futebol

Permitimo-nos alinhavar, adiante, mesmo que rapidamente, algo do que forma o alicerce teórico deste estudo, a fim de conferir maior inteligibilidade às colocações que se seguem e maior cientificidade às singelas reflexões que almejamos ofertar.

2.1. Rede protetiva geral: aproximando-se da esplendorosa axiologia constitucional

A Constituição Federal fixou como fundamento da República a dignidade da pessoa humana (CF, art. 1º, III), tendo como um de seus objetivos fundamentais a promoção do bem de todos (CF, art. 3º, IV), ficando garantido, também a todos, o direito à igualdade e à segurança (CF, art. 5º, caput), firmando-se, no plano juslaboral, um valioso fomento à ampliação de uma rede protetiva cada vez mais intensa e garantidora da dignidade humana do trabalhador (CF, art. 7º, caput), resguardando-se também a todos os trabalhadores - inclusive quando atleta de futebol - o direito de redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança (CF, art. 7º, XXII).

Nosso ordenamento jurídico exige ainda que tanto a propriedade quanto o contrato atinjam sua função social3.

Noutras palavras: o empregador - mesmo sendo entidade de prática desportiva -, seja na dimensão jurídico-patrimonial

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de seus bens, seja na dimensão jurídico-contratual de seus trabalhadores, precisa se realizar, como pessoa jurídica, no cotidiano, dentro das asas da "livre iniciativa", todavia vinculado ao desiderato maior de, em última instância, sempre prestar homenagem à dignidade humana e aos demais princípios substanciais incrustrados no bojo constitucional. No fundo mesmo, a verdade é que a iniciativa empresarial nada tem de "livre", à vista da sua necessária adstrição à função social que a Constituição se lhe impõe.

Não sem razão nossa Constituição Federal, ao elencar os fundamentos da República Federativa do Brasil, também aponta como tal "os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa" (CF, art. 1º, IV). Perceba-se, por oportuno, que, pela clara dicção do texto constitucional, nem o "trabalho" e nem a "livre iniciativa", em si mesmos considerados, constituem fundamento da República Federativa do Brasil, mas, isto sim, a expressão social desses fenômenos, a sua incontornável conformação axiológica aos ditames constitucionais, ou seja, "se e somente se densificados na realidade prática enquanto elementos que se harmonizem para a construção de uma sociedade cada vez mais livre, justa e solidária (CF, art. 3º, I), com a promoção do bem de todos" (CF, art. 3º, IV).

2.2. Rede protetiva da pessoa humana: confrontando papéis sociais

Cogitemos de estar em um belo sábado, ocasião em que determinada pessoa dirige-se ao supermercado, assumindo, ipso facto, de modo preponderante, o papel social de consumidor. Enquanto tal, usufrui, no campo da teoria da reparação de danos, de toda uma prodigiosa rede protetiva que lhe reserva a possibilidade de buscar reparações sem qualquer necessidade de demonstrar culpa por parte do lesionante, ou seja, é de ordem objetiva. Não é só: havendo mais de um ofensor, a responsabilidade que se impõe a cada qual é compartilhada e direta, ou seja, é de matiz solidário4.

Estamos, agora, no domingo, quando a mesma pessoa dirige-se ao estádio de futebol, assumindo, precipuamente, o papel social de torcedor5. Nesse cenário, na mesma esteira do que ocorre quando compra um liquidificador ou um sanduíche, passa a gozar de uma rede protetiva que garante ressarcimento que prescinde de prova do elemento culpa (objetiva) e engloba, em uma inarredável responsabilidade solidária, todos aqueles que concorreram para uma eventual lesão que venha a sofrer (Lei n. 10.671/2003, art. 39-B).

Invadimos, neste momento, a temida segunda-feira, quando o mesmo cidadão então se desloca ao seu local de trabalho - o mesmíssimo supermercado que visitou no sábado. Agora, investindo-se, preponderantemente, do papel social de trabalhador, tem para si, segundo a exegese que tradicionalmente se faz do ordenamento jurídico, uma responsabilidade civil subjetiva (CF, art. 7º, XXVIII6), a demandar inequívoca prova do fator culpa, resguardando, em face daqueles que se agregam para lhe causar dano, uma responsabilidade meramente subsidiária7.

Ora, chega mesmo a ser gritante a discrepância de tratamento que o sistema jurídico confere à pessoa humana, a depender do papel social em que preponderantemente está investida. Causa espécie a falta de razoabilidade das conclusões que brotam de um tal cenário jurídico, onde a pessoa humana consumidora e torcedora é mais valorizada que a pessoa humana trabalhadora. Noutras palavras: não se pode aceitar a fixação de um modelo de sociedade em que o homem

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que vai ao supermercado e ao estádio de futebol goza de maior proteção social que aquele que está no trabalho. Aqui, a nosso sentir, sucede franca violação do postulado constitucional da igualdade material (CF, art. 3º, IV, e art. 5º, caput).

Registre-se, por oportuno, que quando o texto constitucional fala no bem de todos, não abarca apenas a noção comum, presa a uma ótica meramente quantitativa, alusiva à necessidade de que tal benesse abarque o maior número de pessoas. É preciso ir além, injetando na expressão "bem de todos" o máximo de eficácia existencial e social que sua dicção permitir, de modo a legitimar a conclusão de que esse bem deve alcançar a integralidade da mesma pessoa, seja em face de toda a sua especial conformação psicossomática (corpo, alma e espírito), seja em face de todos os papéis sociais que lograr assumir em sua complexa trajetória de vida (pai, filho, trabalhador, contratante, eleitor, consumidor, torcedor etc.).

2.3. A permanente construção de uma específica rede protetiva destinada a tutelar a dignidade humana do trabalhador no âmbito da teoria da responsabilidade civil

Muito embora seja comum se afirmar que, no particular da responsabilidade civil patronal, há de incidir a responsabilidade subjetiva, por força do que dispõe o art. 7º, inciso XXVIII, da Carta da República, é preciso lembrar, também, que no caput desse mesmo dispositivo está consagrada, em semelhante nível constitucional, a cláusula de vedação de retrocesso quanto às condições sociais do trabalhador, quando reza serem direitos dos trabalhadores urbanos e rurais aqueles ali relacionados, "além de outros que visem à melhoria de sua condição social".

Na verdade - é bom que se diga -, o que pretendeu mesmo o legislador constituinte não foi simplesmente fixar uma cláusula de não retrocesso social, como corriqueiramente divulgado nos sítios doutrinários. In vero, foi bem mais além, na medida em que tencionou mesmo foi prescrever, em termos mais precisos, uma cláusula de crescente avanço social, como expressão de algo maior, qual seja, a cláusula geral de tutela e promoção da pessoa humana (CF, arts. 1º, inciso III, e 5º, § 2º)8.

Destarte, o que se deduz é que nossas disposições constitucionais, quando consideradas com mais vagar, revelam-nos um estupendo estímulo a produções jurídicas que se prestem a "dar contínua concretude ao comando de se elevar, cada vez mais, ao longo do tempo, a condição social do cidadão trabalhador, enquanto expressão de tutela da sua dignidade humana (CF, art. 1º, III) e dos valores sociais do trabalho" (CF, art. 1º, IV, art. 5º, caput, art. 6º, caput, art. 170, caput e art. 193).

O art. 7º, ca...

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