Atleta Profissional: Natureza Jurídica do Contrato, Duração do Trabalho e Acréscimos Remuneratórios

AutorRicardo Tavares Gehling
Ocupação do AutorDesembargador do Tribunal Regional do Trabalho do Rio Grande do Sul.
Páginas222-230

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Ver nota 1

O direito se desenvolve equilibrando uma dupla exigência, uma de ordem sistemática, a elaboração de uma ordem jurídica coerente, a outra, de ordem pragmática, a busca de soluções aceitáveis pelo meio, porque conformes ao que lhe parece justo e razoável.

(Chaïm Perelman)

1. Introdução

As recentes e substanciais alterações na Lei n. 9.615/1998, a denominada "Lei Pelé", decorrentes da promulgação da Lei n. 12.395 em 16 de março de 2011, reacenderam os debates em torno das questões que envolvem o desporto e, mais especificamente, o contrato de trabalho de atleta profissional.

Muitos são os encontros acadêmicos, congressos e seminários em que novos e antigos temas são debatidos com ávido interesse, não só em face do diploma legal agora aprovado, mas também porque divergências doutrinárias e jurisprudenciais que já existiam na vigência dos regramentos anteriores não chegaram a ser totalmente superadas. Toma vulto, assim, a disciplina jurídica do Direito Desportivo.

Este breve estudo, focado na duração do trabalho do atleta profissional e acréscimos remuneratórios previstos em lei, enfrenta também o tormentoso tema da natureza jurídica do contrato especial de trabalho em que se assentam estas e outras obrigações, confrontando os dispositivos pertinentes da legislação específica, da Consolidação das Leis do Trabalho e da Constituição da República, com apoio da doutrina e da jurisprudência.

2. A Lei n 12.395/2011 e as incertezas do texto aprovado

A Lei n. 12.395/2011"condensa uma peculiaridade que a torna diferente e ímpar: foi objeto de três aprovações na Câmara Federal e duas aprovações no Senado Federal", conforme salienta o Prof. Álvaro de Melo Filho2, relator do anteprojeto e respectiva exposição de motivos do Ministério dos Esportes, encaminhados ao Legislativo e que redundaram no conhecido PL n. 5.186/2005. Lembra, com propriedade, o Prof. Álvaro Filho3:

No seu percurso legislativo, foi - como PL n. 5.186/2005 - aprovada em fevereiro de 2010, na Câmara, e em julho de 2010, no Senado. Contudo, em face de nove (9) emendas na casa revisora, retornou à apreciação da Câmara Federal. E, enquanto aguardava oportunidade de inclusão em pauta, trancada por medidas provisórias, teve todo o seu conteúdo inserido como emenda na MP n. 502/2010, obtendo mais uma vez aprovação, já em 2011, na Câmara Federal. Empós, seguiu para o Senado Federal que, novamente, aprovou a matéria com uma única emenda, obrigando a nova apreciação pela Câmara Federal. Esta casa legislativa ratificou a emenda do Senado Federal e a novel lex sportiva foi sancionada, transfundindo-se na Lei n. 12.395/2011, com repercussões estruturais na lei n. 9.615/1998.

Uma tramitação com tantas intercorrências, se por um lado deixa transparecer intensa participação, com audiências públicas, propostas, emendas e exaustivos debates, por outro dificulta sobremaneira conhecer a vontade do legislador, o que de resto está longe de ser decisivo no ato de interpretação da lei4.

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Obviamente, se o processo legislativo foi tão intrincado, muitos foram os pontos de choque, a partir de interesses conflitantes levados ao parlamento ou nascidos do próprio debate. Não é demais supor que muitos desses impasses - e nisso o parlamento brasileiro é próspero - somente tenham sido superados com a aprovação de um texto mini-mamente claro e suficientemente dúbio a ponto de os defensores das diversas correntes em disputa se sentirem de alguma forma albergados.

O parágrafo 4º do art. 28 da Lei n. 9.615/1998, com a redação dada pela Lei n. 12.395/2011, passou a dispor:

§ 4º Aplicam-se ao atleta profissional as normas gerais da legislação trabalhista e da Seguridade Social, ressalvadas as peculiaridades constantes desta Lei, especialmente as seguintes:

I - se conveniente à entidade de prática desportiva, a concentração não poderá ser superior a 3 (três) dias consecutivos por semana, desde que esteja programada qualquer partida, prova ou equivalente, amistosa ou oficial, devendo o atleta ficar à disposição do empregador por ocasião da realização de competição fora da localidade onde tenha sua sede;

II - o prazo de concentração poderá ser ampliado, independentemente de qualquer pagamento adicional, quando o atleta estiver à disposição da entidade de administração do desporto;

III - acréscimos remuneratórios em razão de períodos de concentração, viagens, pré-temporada e participação do atleta em partida, prova ou equivalente, conforme previsão contratual;

IV - repouso semanal remunerado de 24 (vinte e quatro) horas ininterruptas, preferentemente em dia subsequente à participação do atleta na partida, prova ou equivalente, quando realizada no final de semana;

V - férias anuais remuneradas de 30 (trinta) dias, acrescidas do abono de férias, coincidentes com o recesso das atividades desportivas;

VI - jornada de trabalho desportiva normal de 44 (quarenta e quatro) horas semanais.

Afinal, o texto aprovado permite a conclusão segura de que os atletas profissionais estejam submetidos a limite e controle de duração do trabalho? O que seria mesmo "jornada desportiva normal de 44 (quarenta e quatro) horas semanais"? Devem estar previstos no contrato apenas os valores dos acréscimos remuneratórios em razão de períodos de concentração, viagens, pré-temporada e participação do atleta em partida, ou o próprio direito a esses acréscimos?

As respostas a estas e outras indagações, infelizmente, talvez só venham após muitos litígios judiciais. No Judiciário é que se dará o round final de conflitos políticos que só foram superados no processo legislativo de forma insatisfatória ou pouco clara. É um dos traços do fenômeno da judicialização da política de que trata Werneck Vianna5. Se, em alguma medida, toda interpretação é criativa e sempre se mostra inevitável um mínimo de discricionariedade na atividade jurisdicional, especialmente na área dos direitos sociais, "quanto mais vaga a lei e mais imprecisos os elementos do direito, mais amplo se torna também o espaço deixado à discricionariedade nas decisões judiciárias. Esta é, portanto, poderosa causa da acentuação que, em nossa época, teve o ativismo, o dinamismo e, enfim, a criatividade dos juízes" (CAPPELLETTI)6.

3. Natureza jurídica do contrato de atleta profissional

A história dos clubes de futebol no Brasil remonta ao limiar do século XX7. Mas o profissionalismo nessa modalidade esportiva - proeminente em nosso país e, consequentemente, neste estudo - surgiu na década de 1930, "quando sete clubes do Rio de Janeiro - Fluminense, Vasco, América, Bangu, Botafogo, Flamengo e São Cristóvão - decidiram em Assembleia, com um placar apertado (4 x 3), oficializar o contrato de seus atletas, pagando-lhes uma remuneração mensal" (SOARES)8.

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Não obstante, apenas com o advento da Lei n. 6.354/1976 o atleta adquiriu formal e expressamente o status de trabalhador, com direitos e deveres inseridos num "contrato de trabalho"9, regido pela lei especial e pelas "normas gerais da legislação do trabalho"10. Nesse interregno, acirrados foram os debates sobre a natureza jurídica da relação entre atleta e clube, pois ela não estava especificamente prevista nem no Código Civil nem na Consolidação das Leis do Trabalho, restando-lhe "um certo limbo jurídico"11.

Merece realce a circunstância sintomática de que o Decreto-lei n. 5.342, de 25 de março de 1943, elaborado no âmbito do Ministério da Educação e Saúde, estabelecia que os desportos e a sua regulamentação fossem de competência exclusiva daquela Pasta. No seu art. 5, dispunha: "As relações entre atletas profissionais ou auxiliares especializados e as entidades desportivas, regular-se-ão pelos contratos que celebrarem, submetendo-se estes às disposições legais, às recomendações do Conselho Nacional de Desportos e às normas desportivas internacionais"12.

Pouco mais de um mês depois, em 1º de maio de 1943, foi aprovada a Consolidação das Leis do Trabalho que, no parágrafo primeiro do seu art. 2º, definiu: "Equiparam-se ao empregador, para os efeitos exclusivos da relação de emprego, os profissionais liberais, as instituições de beneficência, as associações recreativas ou outras instituições sem fins lucrativos, que admitirem trabalhadores como empregados".13

Na realidade, se por um lado a condição de empregado do atleta profissional foi-se firmando na doutrina e na jurisprudência desde o advento da CLT, até se tornar clara e expressa na Lei n. 6.354/1976, dúvidas persistiram quanto à qualificação desses empregados, seus direitos e deveres diante das disposições gerais das normas trabalhistas. Exemplo evidente de incompatibilidade era a característica intrínseca da temporariedade da atividade profissional junto ao clube frente à estabilidade decenal assegurada na Consolidação. A respeito desta matéria, Evaristo de Moraes Filho14 aponta como leading case o litígio "Batatais x Fluminense", no qual o Supremo Tribunal Federal firmou o seguinte entendimento que acabou prevalecendo na jurisprudência e na doutrina:

O atleta profissional é um empregado assalariado, sendo o clube desportivo o seu empregador, para todos os efeitos trabalhistas aplicáveis à espécie. Para isso, foi o jogador equiparado aos artistas de teatro, como congênere, sucedendo-se sempre os seus contratos como de prazo determinado, por mais que se repitam. Ainda que contem mais de 10 anos de serviços prestados, os atletas profissionais não se beneficiarão com a estabilidade. (1a Turma do STF, 18 de setembro de 1950, Rec. Extr. n. 15.932, in Revista do TST, set./out. 1950, p. 38)

Na época tinha vigência o parágrafo único do art. 507 da CLT (Não se aplicam ao trabalho de artistas os dispositivos dos...

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