Autonomia privada e regulação estatal

AutorBruno Zampier
Páginas161-207
AUTONOMIA PRIVADA E REGULAÇÃO ESTATAL
6.1. As novas fronteiras da autonomia privada
A conceituação da autonomia privada não é tarefa das mais fáceis.
Isso porque o dimensionamento do conceito dependerá fortemente do
ordenamento jurídico do qual se está diante e suas mutáveis conf‌igura-
ções limitativas da liberdade. Porém, como ponto de partida, pode-se
utilizar o conceito traçado por Pietro Perlingieri (2008), segundo o
qual a autonomia privada poderia ser entendida como
O poder, reconhecido ou concedido pelo ordenamento estatal a um
indivíduo ou a um grupo, de determinar vicissitudes jurídicas como
consequência de comportamentos – em qualquer medida – livremente
adotados. (PERLINGIERI, 2008, p. 335).
É comum se dizer que o vocábulo grego auto-nomía, formado
por autos -signif‌icando “por si mesmo” e nomos – signif‌icando “lei”,
seria a origem da palavra autonomia. Ou seja, autonomia signif‌icaria
algo como “norma própria”; antônimo, portanto, da expressão he-
teronomia, que teria como signif‌icado “norma por outro”. Donde se
conclui que: quando se tem exercício de autonomia, a norma partirá
do próprio sujeito, que def‌inirá para si regras de conduta. Ao revés,
quando se tem heteronomia, a norma partirá de um ente externo,
alcançando o sujeito.
Há uma tendência em se identif‌icar a autonomia privada como
possibilidade de construção, a partir da manifestação da vontade, da
norma própria que regulará a vida do indivíduo. Porém, para que isso
ocorra de forma legítima, este sujeito deverá se enquadrar nos limites
propostos pelo próprio ordenamento, ou seja, sua liberdade de agir
estará condicionada previamente pela força da lei. Se cada um é o juiz
de seus próprios interesses, nada mais correto que permitir, dentro do
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âmbito do direito de liberdade, a tomada de decisão que melhor lhe
convenha, pautada pela vontade, pela autorregulamentação.
Historicamente, a formulação da autonomia privada remonta
às doutrinas individualistas que inseriam a vontade no centro do
ordenamento, conferindo ao sujeito o poder de regular suas relações
jurídicas de cunho patrimonial. Aqueles que defendem esta visão são,
comumente, denominados de voluntaristas, para quem a vontade
manifestada seria então vinculante, se corresponder de fato à efetiva
intenção do sujeito. Já para os normativistas, mais importante que a
simples manifestação de vontade seria a conf‌iança de quem recebe essa
declaração volitiva. O exteriorizado é mais relevante que o desejado,
sobrelevando-se assim a responsabilidade daquele que livremente se
manifestou. Esta segunda visão possibilitaria se enxergar a autonomia
como fonte de direito, sendo, do ponto de vista moral, aquela que mais
vincularia o indivíduo (PERLINGIERI, 2008, p. 340-341).
A autonomia hoje, portanto, seria melhor denominada como
privada, ao invés de autonomia da vontade. Isso não é apenas um giro
linguístico ou um preciosismo, pelo contrário, denota a migração da
mera vontade desprovida de análises outras, como a da própria or-
dem jurídica, para uma dimensão de construção da esfera privada em
conformidade ao preceituado e disposto pelo ordenamento jurídico
previamente, por meio da imposição de limites positivos ou negativos1.
A autonomia da vontade era fruto da ideologia liberal, tão em
voga no direito oitocentista, trazendo uma noção de autonomia ili-
mitada, sem freios estatais. Tal conjuntura fez com que essa liberdade
individual se convertesse em arbítrio, com o domínio do fraco pelo
forte. A abstenção do estado no campo privado, em nome do direito
de liberdade, gerou a própria supressão deste, levando à derrocada do
Estado Liberal Clássico. Houve então a necessidade de reconf‌iguração
1. Maria de Fátima Freire de Sá e Bruno Torquato de Oliveira Naves (2015)
assim estabelecem: “Preferimos a utilização da expressão autonomia privada
em detrimento da antiga autonomia da vontade. Esta possui uma conotação
psicológica, ligada ao momento do Estado Liberal em que a vontade ocupava
lugar privilegiado, sendo suf‌iciente para criar Direito, cabendo ao Estado
apenas sancioná-la. Assim, com a autonomia privada, substitui-se a carga
individualista da autonomia da vontade.” (SÁ; NAVES, 2015, p. 41)
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da visão de autonomia. E essa mudança levou em conta não apenas
a estrutura consolidada dos atos privados, mas também a visão da
função que estes procuravam alcançar. Vai-se da estrutura à função.
Assim, percebeu-se o quanto era importante reconstruir a ideia
de autonomia, com respeito não apenas ao espaço individual privado,
mas também a preservação do espaço público, no qual as diversas au-
tonomias seriam exercitadas. Para além da preservação de uma função
individual, era necessário perseguir, evitando-se abusos, a função so-
cial no campo privado. A atuação do ser humano só seria respaldada a
partir do momento em que sua liberdade não viesse a invadir o espaço
de determinação do outro. Nesses termos, Maria de Fátima Freire de
Sá e Maíla Mello Campolina Pontes (2009) af‌irmam que
A adoção de uma concepção de autonomia integradora dos espaços
público e privado é a única que, diante de uma pluralidade, propicia
a preservação da variável individual dentro de uma realidade intersub-
jetivamente compartilhada na qual cada um possa se preservar, mas,
ao mesmo tempo, reconhecer o outro e participar da construção desse
universo comungado sem que, para tal, excluam-se as diferenças. (SÁ;
PONTES, 2009, p. 45).
Pietro Perlingieri (2008) caminha no mesmo sentido ao af‌ir-
mar que o ato de regulação de um interesse pode provir de um ator
público ou privado e não será isso que irá determinar o fenômeno
da autonomia. Este poder de agir conforme a vontade, emanado do
ordenamento, alcançará ambos os ambientes, sendo então por vezes
um mesmo contrato, regido por normas de natureza pública e privada
a um só tempo. Logo, não haveria autonomia apenas sobre o privado,
como já se pensou no passado. Certo será que, por vezes, os sujeitos
públicos, vocacionados que são a gerir interesses supraindividuais,
irão exercer sua autonomia respeitando alguns procedimentos tra-
çados pela lei, a f‌im de se assegurar outros princípios publicistas,
como a moralidade, a impessoalidade, a publicidade e a própria
legalidade (PERLINGIERI, 2008, p. 336).
Tanto isso é verdade que crescem signif‌icativamente os atos
tipicamente privados no âmbito da administração pública, podendo
ser citados no Brasil a regulamentação das parcerias público-privadas,
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