Dedutibilidade de perdas não técnicas na apuração do lucro real e da base de cálculo da csl das distribuidoras de energia elétrica - uma visão crítica aos precedentes do CARF

AutorDiego Miguita
Páginas125-161
DEDUTIBILIDADE DE PERDAS NÃO TÉCNICAS
NA APURAÇÃO DO LUCRO REAL E DA BASE
DE CÁLCULO DA CSL DAS DISTRIBUIDORAS
DE ENERGIA ELÉTRICA – UMA VISÃO CRÍTICA
AOS PRECEDENTES DO CARF
Diego Miguita
Professor da Fundação Instituto de Pesquisas Contábeis, Atuariais e Financeiras – FI-
PECAFI. Certicado em International Financial Reporting (CertIFRS) pela Association
of Chartered Certied Accountants – ACCA. Fundador e coordenador do Núcleo de
Estudos sobre Práticas em IFRS – NEP/IFRS. Mestrando em Direito Tributário na Facul-
dade de Direito da Universidade de São Paulo – USP. MBA em gestão tributária pela
FIPECAFI. Bacharel em Direito pela Pontifícia Universidade de São Paulo – PUC-SP.
Sumário: 1. Introdução – 2. As perdas não técnicas sob a ótica regulatória – 3. O artigo 47 da Lei
4.506/1964 e visão crítica sobre a posição da COSIT e do CARF sobre a dedutibilidade de perdas
não técnicas – 4. O necessário reconhecimento da dedutibilidade das perdas não técnicas a partir
de argumentos não analisados pelo CARF – 5. Bibliograa.
1. INTRODUÇÃO
Desde meados de 2016, as distribuidoras de energia elétrica brasileiras foram sur-
preendidas com a divulgação da Solução de Consulta Interna 17/2016 – “SCI 3/2016”,
segundo a qual “as perdas não técnicas poderão ser consideradas como despesa dedutível
para f‌ins de apuração do lucro tributável, se decorrentes de desfalque, apropriação indébita
ou furto, ocasionados por empregados ou terceiros, quando houver inquérito instaurado
nos termos da legislação trabalhista, ou quando ajuizada queixa ou dirigida representação
criminal à autoridade policial” (grifado). Trata-se de tema atual, relevante, sem posição
def‌inida no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – “CARF”.
Diz-se que o tema é atual pelo fato de que, após a publicação da referida SCI
17/2016, houve esforço concentrado da Coordenação Especial de Maiores Contri-
buintes – “COMAC” com o objetivo de f‌iscalização das distribuidoras de energia
elétrica. Em razão de uma série de autuações, o tema começa a frequentar as pautas
de julgamento do CARF. Também é relevante pelo fato de afetar todas as 52 conces-
sionárias do país, que atendem mais de 89 milhões de unidades consumidores e 206
milhões de pessoas1, movimentando bilhões de reais em energia injetada no sistema
1. Dados extraídos do mapa da distribuição de energia elétrica no Brasil, divulgado pela Agência Nacional de
Energia Elétrica em agosto de 2021. Disponível em: https://app.powerbi.com/view?r=eyJrIjoiYTdkM2M4M-
zAtOGQ1Ny00N2Y5LWJhNjctMTFlMTc0OWIxNzUzIiwidCI6IjQwZDZmOWI4LWVjYTctNDZhMi05Mm-
Q0LWVhNGU5YzAxNzBlMSIsImMiOjR9&pageName=ReportSection. Acessado em: 06 dez 2021.
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e consumida. Por f‌im, a escolha do tema foi motivada pela constatação de que, até
a presente data, os poucos julgamentos realizados no CARF não sinalizam posição
consolidada, conforme mapeamento de precedentes constante deste artigo, além de,
a nosso ver, não terem abordado o tema sob todos os ângulos e argumentos possíveis.
Dentre desse contexto, o objetivo do presente artigo é lançar luz sobre a contro-
vérsia da dedutibilidade de perdas não técnica de energia elétrica, as quais incluem
as perdas com furtos de energia suportadas pelas concessionárias, evidenciando as
particularidades e argumentos que devem ser devidamente analisados pelos órgãos
julgadores administrativos e judiciais para conf‌irmação ou anulação de exigências
f‌iscais. Para tanto, pretende-se avaliar criticamente os acórdãos proferidos pelo CARF
sobre o tema, notadamente para destacar ângulos e argumentos ainda não enfrentados.
Conquanto as perdas não técnicas provoquem repercussões tanto para f‌ins de
apuração do lucro real (base de cálculo do imposto de renda da pessoa jurídica –
“IRPJ”2) e da base de cálculo da contribuição social sobre o lucro – “CSL” quanto
para a apuração das contribuições para o Programa de Integração Social – “PIS” e
para o f‌inanciamento da Seguridade Social – “COFINS”, o presente artigo abordará
exclusivamente a disciplina tributária relativa aos dois primeiros tributos: IRPJ e CSL.
Para melhor compreensão da controvérsia subjacente ao tema, o presente artigo
está divido em quatro seções: (i) esta introdução; (ii) def‌inição regulatória de “perdas
não técnicas” e a sua dinâmica sob a ótica da prestação de serviço público de distribui-
ção de energia elétrica, especialmente no que se refere à formação da tarifa cobrada
dos consumidores; (iii) em seguida, será indicado o dispositivo legal que dá origem
à controvérsia tributária e a visão crítica da SCI COSIT 17/2016 e dos precedentes
do CARF, delimitando quais argumentos estiveram sob o crivo do órgão julgador;
e (iv) exposição de argumentos que, a nosso ver, precisarão ser enfrentados pelos
órgãos de julgamento administrativo e judicial, e que não constaram dos acórdãos
do CARF mapeados até a presente data e que serviram de base à análise crítica aqui
desempenhada.
2. AS PERDAS NÃO TÉCNICAS SOB A ÓTICA REGULATÓRIA
Para compreensão do contexto em que se insere a discussão tributária tratada
no presente artigo, será explicada, em linhas gerais, o que são as perdas não técni-
cas suportadas pelas distribuidoras de energia elétrica, especialmente apontando o
seu cálculo residual, por diferença, sem mensuração específ‌ica dos eventos que a
compõem.
A regulamentação editada pela Agência Nacional de Energia Elétrica – “ANEEL”
a respeito das perdas de energia elétrica consta do Submódulo 2.6. (“Perda de Ener-
gia”) dos Procedimentos de Regulação Tarifária – “PRORET”. Resumidamente, os
2.
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VISÃO CRÍTICA AOS PRECEDENTES DO CARF
PRORET “têm caráter normativo e consolidam a regulamentação acerca dos processos
tarifários” das distribuidoras de energia elétrica3. Em outros termos, estabelecem as
regras para def‌inir e revisar as tarifas de distribuição de energia elétrica.
De modo bastante resumido, não é toda energia elétrica injetada na rede de
distribuição que é entregue aos consumidores. Conforme esclarecido didaticamente
pela ANEEL, “as perdas referem-se à energia elétrica gerada que passa pelas linhas de
transmissão (Rede Básica) e redes da distribuição, mas que não chega a ser comerciali-
zada, seja por motivos técnicos ou comerciais 4 (grifado). Nos PRORET5, as perdas na
distribuição de energia são divididas em duas espécies:
(i) Perdas técnicas: relacionadas a fatores inerentes “ao processo de transporte, de transforma-
ção de tensão e de medição da energia na rede da concessionária”. Decorrem, por exemplo, da
dissipação da energia elétrica nas linhas de distribuição na forma de calor; e
(ii) Perdas não técnicas: também referidas como “perdas comerciais”, representam “todas as
demais perdas associadas à distribuição de energia elétrica, tais como furtos de energia, erros de
medição, erros no processo de faturamento, unidades consumidoras sem equipamento de medi-
ção etc.”. São apuradas de forma residual, correspondendo à diferença entre as perdas totais e as
perdas técnicas.
É importante ressaltar que as perdas não técnicas não decorrem exclusivamente
do furto de energia elétrica, mas também de adulterações no medidor de energia
(fraude de energia), de efetivos erros de medição e faturamento6 e outros eventos não
qualif‌icados como de ordem técnica (que compõem, obviamente, as perdas técnicas).
Além disso, o caráter residual de mensuração das perdas comerciais (que, como
visto, são também assim denominadas as perdas não técnicas) não pode ser ignorado:
não há cálculo de perdas não técnicas. Pragmaticamente, é seguro af‌irmar que não
existem engenheiros, prof‌issionais especializados ou equipamentos que mensuram
perdas não técnicas, e, por consequência, o quanto representam, em termos de quan-
tidade e valor, cada evento qualif‌icado como perda não técnica.
Com base na regulamentação do setor elétrico em vigor, sabe-se quanto foi
injetado de energia no sistema elétrico e quanto houve de perdas em geral. Também
é possível determinar o quanto houve de perdas técnicas. Entretanto, as perdas não
técnicas não são objeto de cálculo: será o que sobra, o valor residual que não é pos-
sível tecnicamente identif‌icar, segregar e mensurar individualizadamente conforme
os eventos causadores (furtos, erros de medição etc.).
3. Conforme def‌inição constante da página eletrônica da ANEEL. Disponível em: https://www.aneel.gov.br/
procedimentos-de-regulacao-tarifaria-proret. Acesso em 15 dez 2021.
4. Disponível em: /www.aneel.gov.br/metodologia-distribuicao/-/asset_publisher/e2INtBH4EC4e/content/
perdas/654800?inheritRedirect=false. Acesso em 15 dez 2021.
5. “Perdas na Distribuição – PD: Diferença entre a energia injetada na rede da distribuidora e total de energia vendida
e entregue, expressa em megawatt-hora MWh e composta pelas perdas de origem técnica e não técnica.
6. Disponível em: http://www.aneel.gov.br/metodologia-distribuicao/-/asset_publisher/e2INtBH4EC4e/
content/perdas/654800?inheritRedirect=false. Acesso em 22 dez 2021.

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