Direitos Fundamentais na Relação de Emprego

AutorSilvia Teixeira do Vale/Rosangela Rodrigues D. de Lacerda
Ocupação do AutorJuíza do Trabalho no TRT da 5ª Região/Procuradora do Trabalho da PRT 5ª Região
Páginas161-197
10.
DIREITOS FUNDAMENTAIS NA RELAÇÃO DE EMPREGO
(1) Em verdade, o trabalho humano remonta à própria evolução do homo sapiens, pois há cerca de um milhão de anos os
humanos já usavam ferramentas, caçavam e coletavam. HARARI, Yuval Noah. Sapiens: uma breve história da humanidade.
18. ed. Porto Alegre: L&PM Editores, 2016, p. 19.
(2) Segadas Viana é enfático: “O homem sempre trabalhou; primeiro para obter seus alimentos, já que não tinha outras ne-
cessidades em face do primitivismo de sua vida. Depois, quando começou a sentir o imperativo de se defender dos animais
ferozes e de outros homens, iniciou-se na fabricação de armas e instrumentos de defesa. Posteriormente, verificou que o osso
encontrado nos restos de animais putrefatos partia-se com facilidade e passou, no período paleolítico, a lascar pedras para
fabricar lanças e machados, criando sua primeira atividade industrial”. SÜSSEKIND, Arnaldo; MARANHÃO, Délio; VIANNA,
Segadas; TEIXEIRA, Lima. Instituições de direito do trabalho – vol. I. 18. ed. Atualizado por Arnaldo Süssekind e Lima
Teixeira. São Paulo: LTr, 1999, p. 29.
(3) HESÍODO. Os trabalhos e os dias. Tradução de Mary de Camargo Neves Lafer. 8. ed. São Paulo: Iluminuras, 2015, p. 14.
Nesse capítulo será analisada a eficácia dos direi-
tos fundamentais na relação de emprego e, sobretudo,
o alcance dos direitos fundamentais inespecíficos nos
contratos firmados entre empregado e empregador.
Para tanto, necessário se faz averiguar como o con-
trato de emprego é uma relação de poder, justamente
para, ao final, refletir em que medida dito poder in-
fluencia na observância dos direitos de cidadania no
vínculo empregatício.
Buscar a origem do poder decorrente da rela-
ção de emprego é trilhar necessariamente para o pon-
to de partida do direito do trabalho, pois nem sempre
as relações de trabalho foram forjadas como se apre-
sentam atualmente, um contrato eivado de alterida-
de, no qual de um lado se apresenta o empregador,
com poder diretivo e, do outro, o empregado, cuja
posição contratual tem como destino o cumprimento
de ordens determinadas por aquele.
O trabalho humano(1) por conta alheia é muito
antigo(2), bem anterior à Revolução Industrial. Veja-
-se, por exemplo a grande preocupação do homem
grego, que já na Antiguidade tentava explicar o fardo
que era trabalhar, a partir da mitologia, no clássico
conflito travado entre Zeus e Prometeu. Em Os traba-
lhos e os dias(3), Hesíodo tenciona explicar para o seu
irmão, Perseu, a organização do mundo dos mortais,
indicando a origem, as limitações e os deveres dos
homens.
No poema Teogonia, Hesíodo relata que Prome-
teu, que era muito amigo de Zeus, ajudou o deus su-
premo a driblar a fúria de seu pai, Cronos, o qual
foi destronado pelo filho. O dom da imortalidade
não o impediu de se aproximar demais do homem,
sua criação. Ele concedeu ao ser humano o poder
de pensar e raciocinar, bem como lhe transmitiu os
mais variados ofícios e aptidões. Mas essa preferên-
cia de Prometeu pela companhia dos homens deixou
o enciumado Zeus colérico. A raiva dessa divindade
cresceu cada vez mais quando ele descobriu que seu
pretenso amigo o estava traindo.
O titã matou um boi e o fracionou em dois peda-
ços, ambos ocultos em tiras de couro; dessas frações,
uma detinha somente gordura e ossos, enquanto a
carne estava reservada para o pedaço menor. Prome-
teu tentou oferecer a parte mínima para os deuses
olímpicos, mas Zeus não aceitou, pois desejava o
bocado maior. Mesmo assim, Prometeu conseguiu
ludibriar Zeus, que quando percebeu o embuste fi-
cou enfurecido e resolveu subtrair da raça humana o
domínio do fogo. Prometeu, mais uma vez desejando
favorecer a humanidade, roubou o fogo do Olimpo,
pregando uma peça nos poderosos deuses. Inten-
tando encerrar a disputa, Zeus presenteou os seres
humanos e Prometeu com a caixa de Pandora, que
continha o bem e o mal.
Fábio Gomes explica que, dentre as várias acep-
ções possíveis do mito de Prometeu, a que mais sal-
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CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL DO TRABALHO
ta aos olhos é a “indicação de um novo status do ser
humano”(4), ou da nova condição da raça humana,
que, por conta das travessuras de Prometeu e da con-
sequente represália de Zeus, teria sido condenada a
trabalhar em uma terra onde, remotamente, as rique-
zas nasciam espontaneamente(5). O trabalho para o ho-
mem grego antigo era, portanto, encarado como uma
fatalidade, algo inevitável, pois inerente aos mortais,
não era imbuído da ideia da dignidade, como se ob-
serva a partir da Idade Moderna.
É dizer, os antigos tinham certeza da mortalidade,
ou da condição humana, e, como desejavam marcar
de maneira inextinguível a sua presença durante o
tempo de vida, entendiam que o trabalho era uma ati-
vidade menor, relegada àquelas pessoas que realmen-
te precisavam prestar algum serviço para suportar as
necessidades vitais básicas. Daí porque o homem
grego antigo acreditava na necessária escravidão de
alguns homens, encarados pela sociedade de então
como um animal doméstico. Conforme leciona Han-
nah Arendt:
trabalhar significava ser escravizado pela neces-
sidade, e essa escravização era inerente às condi-
ções da vida humana. Pelo fato de serem domi-
nados pelas necessidades da vida, os homens só
podiam conquistar a liberdade dominando outros
que ele, à força, sujeitava à necessidade. A degra-
dação do escravo era um golpe do destino e um
destino pior que a morte, pois implicava a me-
tamorfose do homem em algo semelhante a um
animal doméstico(6).
Como explica a mesma autora, a escravidão na
Antiguidade jamais teve como intuito o barateamento
(4) GOMES, Fábio Rodrigues. O direito fundamental ao trabalho: perspectiva histórica, filosófica e dogmático-analítica.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 268.
(5) De forma muito semelhante é encontrada no livro do Gênesis, capítulo 3, a origem do mal da humanidade, atribuída a
Adão e Eva, que provaram o fruto proibido do Jardim do Éden e condenaram a humanidade a viver do resultado de seu tra-
balho em uma terra onde, outrora, brotavam riquezas: “Javé Deus disse ao homem: já que você deu ouvidos à sua mulher e
comeu da árvore cujo fruto eu lhe tinha proibido comer, maldita seja a terra por sua causa. Enquanto você viver, você dela se
alimentará com fadiga. A terra produzirá para você espinhos e ervas daninhas, e você comerá a erva dos campos. Você comerá
seu pão com suor do seu rosto, até que volte para a terra, pois dela foi tirado”. BÍBLIA, A. Velho Testamento: Genesis. São
Paulo: Paulus, 1990, p. 16.
(6) ARENDT, Hannah. A condição humana. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010, p. 103.
(7) ARENDT, Hannah. A condição humana. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010, p. 104.
(8) ARENDT, Hannah. A condição humana. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010, p. 104.
(9) GOMES, Fábio Rodrigues. O direito fundamental ao trabalho: perspectiva histórica, filosófica e dogmático-analítica.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 273.
(10) BARROS, Alice Monteiro de. Curso de direito do trabalho. 10. ed. São Paulo: LTr, 2016, p. 45.
da mão de obra, “mas sim a tentativa de excluir o
trabalho das condições da vida”. Nesse contex-
to, era extremamente compreensível o uso do ter-
mo animal laborans, assim entendido como, dentre
as espécies animais que povoavam a Terra, “a mais
desenvolvida”(7). Nesse contexto, toda a atividade do
homem grego antigo congregava para a sua participa-
ção na vida pública, porquanto este era o real exer-
cício da cidadania, por meio da ação e do discurso(8)
na polis.
Esclarece Fábio Gomes que a ideia de privacidade
“significava que o indivíduo estava ‘privado’ daquilo
que ele considerava mais importante: a participação
na esfera pública”. Por consequência, “os homens
que precisassem laborar e tivessem restrito o seu con-
vívio na polis em virtude das necessidades ordinárias
da vida, estariam inferiorizados perante os demais,
pois não lhes seria dada a oportunidade de mostrar
quem realmente eram”(9).
Como enfatiza Alice Monteiro de Barros, na An-
tiguidade clássica, no mundo greco-romano, o tra-
balho possuía um sentido material, era reduzido a
coisa, o que tornou possível a escravidão. A condição
de escravo derivava do fato de nascer de mãe escrava,
de ser prisioneiro de guerra, de condenação penal, de
descumprimento de obrigações tributárias, de deser-
ção do exército, além de outras razões. E, nessa forma
de trabalho, o homem perde a posse de si mesmo. Ao
escravo era confiado o trabalho manual, considerado
vil, enquanto os homens livres dedicavam-se ao pen-
samento e à contemplação, para os quais os escravos
eram considerados incapazes(10).
É bastante comum encontrar autores atrelando
a origem do trabalho dependente e livre à figura da
Direitos Fundamentais na Relação de Emprego
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locatio conductio(11), que abarcaria a divisão nas moda-
lidades da locatio conductio rei (locação de coisas, ou,
melhor dizendo, o antecedente histórico ao moderno
contrato de locação), da locatio conductio operis fa-
ciendi (antepassado do atual contrato de empreitada)
e da locatio conductio operarum, que corresponderia
ao antecedente do atual contrato de trabalho, tendo-
-se que o prestador de serviços seria o locador da
energia laborativa e o credor do trabalho coincidiria
com a figura do locatário e o preço (merces ou pensio)
seria a remuneração.
Insta relembrar, no entanto, que durante a Anti-
guidade clássica a locação de mão de obra e de ser-
viços era rara, se comparada com a escravidão. Isso
porque, para os romanos, esta somente era possível
para os fatos materiais, não se estendendo aos servi-
ços intelectuais(12).
Com razão, Maria do Rosário Palma Ramalho
pontua que “o fenômeno do trabalho subordinado de
que o Direito do Trabalho se ocupa, é efectivamente,
um fenómeno moderno, projectado pela Revolução
Industrial”. E prossegue: “não porque o trabalho de-
pendente mas livre não existisse anteriormente, mas
porque nas formas de trabalho pré-industrial o requi-
sito da liberdade do prestador não tinha o significado
axiológico pleno e irrestrito que hoje lhe reconhe-
cemos(13)”. Nesse mesmo sentido, Maurício Godinho
Delgado esclarece que “a existência do trabalho livre
é pressuposto histórico-material do surgimento do
trabalho subordinado”. Isso porque este, de forma
relevante, não ocorre “enquanto não assentada uma
larga oferta de trabalho livre no universo econômico-
-social”, tendo-se que o “elemento subordinação não
se constrói de modo distintivo senão em relações
em que o prestador não esteja submetido de modo
pessoal e absoluto ao tomador de serviços(14)”. Em
(11) CORDEIRO, Antonio Menezes. Da natureza do direito do locatário. Lisboa: Separata da Revista da Ordem dos Advo-
gados, 1980, p. 28.
(12) BARROS, Alice Monteiro de. Curso de direito do trabalho. 10. ed. São Paulo: LTr, 2016, p. 47.
(13) RAMALHO, Maria do Rosário Palma. Direito do trabalho – parte I. Coimbra: Almedina, 2005, p. 41.
(14) DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 15. ed. São Paulo: LTr, 2016, p. 90.
(15) RAMALHO, Maria do Rosário Palma. Direito do trabalho – parte I. Coimbra: Almedina, 2005, p. 44-45.
(16) NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Curso de direito do trabalho. 18. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 157.
(17) O artigo I da Declaração do Bom Povo da Virgínia declara: “Todos os seres humanos são, pela sua natureza, igualmente
livres e independentes, e possuem certos direitos inatos, dos quais, ao entrarem no estado de sociedade, não podem, por ne-
nhum tipo de pacto, privar ou despojar sua posteridade; nomeadamente, a fruição da vida e da liberdade, com os meios de ad-
quirir e possuir a propriedade de bens, bem como de procurar a felicidade e a segurança”. Tal declaração goza de importância
ímpar, sendo considerada por Comparato o texto que consagra o nascimento dos direitos humanos na história. COMPARATO,
Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 49.
consequência, as relações escravistas e servis são in-
compatíveis com o contrato de emprego.
Sem embargo, o contrato de emprego (e, por con-
sequência, o próprio direito do trabalho), tal como
hoje se observa, é algo moderno, um fenômeno pós-
-Revolução Francesa e Revolução Industrial, poden-
do-se afirmar que somente por força da racionalidade
advinda daquela foi possível pensar o trabalho sob a
ideia de liberdade do prestador de serviços e de igual-
dade dos entes jurídicos privados.
Daí porque Maria do Rosário Palma Ramalho re-
futa a ideia segundo a qual o fenômeno de trabalho
dependente encontra respaldo em institutos civilistas
antigos, pois os códigos civis oitocentistas recorre-
ram à figura da locatio conductio operarum e “enqua-
draram o fenómeno emergente do trabalho subordi-
nado através de uma das suas projecções modernas,
mas, ao fazê-lo sob as vestes de uma figura tradicio-
nal, estão, afinal, a regular um fenómeno novo(15)”.
Nesse trilhar, esposa o presente estudo o enten-
dimento de que a relação de emprego e, de resto, o
estudo do direito do trabalho, encontra suas reais
origens na Revolução Industrial, que mudou subs-
tancialmente a forma de produção, antes servil e ar-
tesanal, para a fabricação manufaturada, com acúmulo
de produção e capital, tornando o trabalhador empre-
gado e, ao mesmo tempo, consumidor, em um sistema
simbiótico. Tamanha foi a importância desse contexto
histórico para o direito do trabalho que a primeira de-
nominação que lhe foi dada era atrelada à indústria,
tendo recebido o batismo de legislação industrial, de-
pois evoluindo para o direito industrial(16).
A Revolução Francesa, juntamente com as de-
clarações de direitos norte-americanas(17), foram res-
ponsáveis pela emancipação histórica do indivíduo
perante diversos estamentos sociais: a família, o clã,

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