Direitos Fundamentais como Sistema de Valores

AutorSilvia Teixeira do Vale/Rosangela Rodrigues D. de Lacerda
Ocupação do AutorJuíza do Trabalho no TRT da 5ª Região/Procuradora do Trabalho da PRT 5ª Região
Páginas145-160
9.
DIREITOS FUNDAMENTAIS COMO SISTEMA DE VALORES
(1) Veja-se, por exemplo, julgado colhido do Supremo Tribunal Federal, onde não se admite Recurso Extraordinário, a não
ser por ofensa direta à Constituição: “EMENTA. CONSTITUCIONAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO. OFENSA À CONS-
TITUIÇÃO. MATÉRIA FÁTICA. SÚMULA N. 279 do STF. I. Somente por ofensa direta à Constituição autoriza a admissão
Segundo a clássica doutrina do Estado liberal, os
direitos fundamentais somente eram entendidos con-
soante a lógica estatal abstencionista, para que fosse
assegurado o direito de liberdade do indivíduo, racio-
nalidade que trazia a reboque a ideia de que a Cons-
tituição era um mero documento político, inferior à
lei, o que desembocava no não desenvolvimento do
próprio direito constitucional, que evoluía paulatina-
mente, enquanto o direito civil crescia, imbuído de
teorias que justificavam a sua superioridade.
O cenário narrado era bastante compreensível,
diante da tradição jurídica presente ao longo de sé-
culos e disseminada pelo mundo ocidental através
do povo romano. Até o jusnaturalismo, no afã de se
fazer mais perene, havia sido codificado, fazendo-se
crer que algo não presente na legislação não era va-
lorado pela sociedade. Era chegada a época de um
jusnaturalismo racional.
Esse cenário positivista, que afastava a moral, a
ética e a justiça do direito, fez-se presente em todo o
século XIX, auge das ideias liberais, perdurando for-
temente na doutrina civil e constitucional até meados
do século XX, momento em que houve uma mudan-
ça substancial de racionalidade e, pouco a pouco, a
hermenêutica constitucional passou a admitir a per-
meação do direito pela moral, constitucionalizando,
por assim dizer, o próprio direito, agora imbuído de
valores que se irradiavam para todas as esferas go-
vernamentais e até para as entidades privadas, algo
impensável segundo a lógica liberal-burguesa.
Para tanto, foi necessário que o mundo testemu-
nhasse as barbáries praticadas pelo holocausto, onde
o ser humano foi menosprezado, não dignificado e
tratado como meio para o alcance de um fim que se
pretendia legítimo.
Na Alemanha, país responsável tanto pelo cená-
rio horrendo narrado quanto pela própria modifica-
ção do pensamento positivista e virada constitucio-
nalista, a Constituição de Weimar, hoje plenamente
reconhecida como uma das primeiras no mundo a
tratar sobre os direitos sociais, sequer concebia os
direitos fundamentais como cláusulas pétreas, omis-
são que terminou sendo decisiva para fazer com que
Hitler retirasse a cidadania dos judeus e iniciasse a
perseguição destes pelos mais diversos recantos da
Europa.
Terminada a Segunda Guerra Mundial, foi pu-
blicada na Alemanha, em 1949, a Constituição de
Bonn e, dois anos após, em 1951, foi criado o Tri-
bunal Constitucional Federal, composto por juristas
contrários às ideias que justificavam o holocausto,
fato peremptório para a modificação da hermenêuti-
ca constitucional, que passou a entender os direitos
fundamentais como um sistema de valores, raciona-
lidade que foi construída a partir de um julgado, mas
plenamente desenvolvida pela Corte Constitucional
alemã, influenciando diretamente a interpretação dos
princípios como normas, a eficácia dos direitos fun-
damentais entre os particulares – o que se denomi-
nou chamar de eficácia horizontal – e o alcance dos
direitos de liberdade, agora entendidos sob a ótica
também objetiva.
Tal interpretação modificou de vez a própria con-
cepção dos direitos fundamentais sociais, que passa-
ram a se desenvolver também sob o aspecto proteti-
vo, não só fático, mas sobretudo jurídico.
influenciada pelo influxo interpretativo das normas
constitucionais campeado na Alemanha e é justamen-
te esse o motivo por que se faz necessária a análise
da construção germânica dos direitos fundamentais
como valores, já que a jurisprudência pátria ainda é
carente de avanço científico nesse sentido(1).
146
CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL DO TRABALHO
Se for possível fixar o momento da mudança nar-
rada, esse foi o julgamento do que se denominou caso
Lüth.
Em 1950, durante a realização de um festival ci-
nematográfico ocorrido em Hamburgo, o então presi-
dente do Clube de Imprensa, Erich Lüth, além de ex-
por publicamente o diretor de “Amantes Imortais”(2),
Sr. Veit Harlan, acusando-o de grande disseminador
das ideias nazistas, também organizou um boicote
juntamente aos distribuidores de filmes. Harlan e os
parceiros comerciais ajuizaram uma ação cominató-
ria em face de Lüth, com fulcro no §826 BGB, dis-
positivo da lei civil alemã que obrigava todo aquele
que, por ação imoral, causar dano a outrem, a uma
prestação negativa – no caso, deixar de boicotar o
filme –, sob a cominação de pecúnia.
A referida ação teve o pedido julgado procedente
pelo Tribunal Estadual de Hamburgo. Lüth, então,
interpôs recurso de apelação junto ao Tribunal Supe-
rior de Hamburgo e, ao mesmo tempo, Reclamação
Constitucional, alegando violação do seu direito fun-
damental à liberdade de expressão do pensamento,
garantida pelo art. 5 I 1 GG(3).
O Tribunal Constitucional Federal alemão, já em
1958, julgando procedente a Reclamação, revogou
a decisão do Tribunal Estadual, declarando que, de
acordo com a jurisprudência permanente do Tri-
do recurso extraordinário. No caso, o acórdão limita-se a interpretar normas infraconstitucionais. II. Alegação de ofensa ao de-
vido processo legal: CF, art. 5º, LV: se ofensa tivesse havido, seria ela indireta, reflexa, dado que a ofensa direta seria a normas
processuais. E a ofensa a preceito constitucional que autoriza a admissão do recurso extraordinário é ofensa direta, frontal. III.
Alegação de ofensa ao inciso IX do art. 93 da CF: improcedência, porque o que pretende o recorrente, no ponto, é impugnar a
decisão que lhe é contrária, certo que o acórdão está suficientemente fundamentado. IV. Incidência, no caso, da Súmula n. 279 do
STF. V. Agravo não provido”. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Agravo de Instrumento n. 481.215/RJ.
Relator Ministro Carlos Velloso; Órgão julgador: Segunda Turma; Agravante: Município do Rio de Janeiro; Agravada: Rio Doce
Geologia e Mineração S/A – DOCEGEO; Data de julgamento: 13.12.2005; Data de publicação: DJ de 24.02.06.
(2) Nesse, assim como em outros filmes dirigidos pelo Sr. Harlan, há forte incitamento à violência em face dos judeus.
(3) SCHWABE, Jürgen. Cinquenta anos de jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal Alemão. Tradução de Beatriz
Hennig, Leonardo Martins, Mariana Bigelli de Carvalho, Tereza Maria de Castro e Vivianne Geraldes Ferreira. Montevidéu:
Fundación Konrad-Adenauer, 2005, p. 381.
(4) No dizer de Pérez Luño: “no horizonte do constitucionalismo atual, os direitos fundamentais desempenham, portanto,
uma dupla função: no plano subjetivo, seguem atuando como garantias da liberdade individual, embora a este papel clássico
se junte agora a defesa dos aspectos sociais e coletivos da subjetividade, enquanto que no [plano] objetivo têm assumido uma
dimensão institucional a partir da qual seu conteúdo deve ser funcionalizado para a consecução dos fins e valores constitucio-
nalmente proclamados”. No original: “en el horizonte del constitucionalismo actual los derechos fundamentales desempeñan,
por tanto, una doble función: en el plano subjetivo siguen actuando como garantias de la liberdad individual, si bien a este
papel clásico se aúna ahora la defensa de los aspectos sociales y colectivos de la subjetividad, mientras que en el objetivo han
asumido una dimensión institucional a partir de la cual su contenido debe funcionalizarse para la consecución de los fines
y valores constitucionalmente proclamados”. Tradução nossa. LUÑO, Antonio Enrique Pérez. Los derechos fundamentales.
Madrid: Editorial Tecnos, 1984, p. 21.
(5) ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos fundamentais na Constituição portuguesa de 1976. 4. ed. Coimbra: Al-
medina, 2009, p. 109.
bunal Constitucional Federal, as normas jusfunda-
mentais contêm não só direitos subjetivos de defesa
do indivíduo frente ao Estado, mas representam, ao
mesmo tempo, uma ordem valorativa objetiva que,
enquanto decisão básica jurídico-fundamental, vale
para todos os âmbitos do direito e proporcionam di-
retrizes e impulsos para a legislação, a administração
e a jurisprudência.
A partir dessa decisão, com fulcro na teoria axio-
lógica, os direitos fundamentais, a despeito de encer-
rarem direitos subjetivos para os indivíduos, também
passaram a ser considerados como valores objeti-
vos(4) de uma comunidade e, como tais, se espraiam
por todo o ordenamento, vinculando juridicamente
todas as funções estatais, dentre elas o próprio Po-
der Judiciário, que passa a ter como principal função
interpretar a Constituição e as leis, de modo a dar
afetividade aos direitos fundamentais.
Nas palavras de Vieira de Andrade, os direitos
fundamentais “não podem ser pensados apenas do
ponto de vista dos indivíduos, enquanto posições ju-
rídicas de que estes são titulares perante o Estado”,
pois, eles “valem juridicamente também do ponto de
vista da comunidade, como valores ou fins de que se
propõe prosseguir, em grande medida através da ac-
ção estadual”(5), que é, em outras palavras o próprio
dever de proteção estatal em relação aos indivíduos.

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