Hermenêutica Constitucional

AutorSilvia Teixeira do Vale/Rosangela Rodrigues D. de Lacerda
Ocupação do AutorJuíza do Trabalho no TRT da 5ª Região/Procuradora do Trabalho da PRT 5ª Região
Páginas96-111
6.
HERMENÊUTICA CONSTITUCIONAL
(1) HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para
a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris, 2002, p. 20-23.
(2) HÄBERLE, Peter. Hermenêutica constitucional. A sociedade aberta dos intérpretes da Constituição: contribuição para
a interpretação pluralista e “procedimental” da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sergio
Antonio Fabris, 2002, p. 30.
(3) SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente – contra o desperdício da experiência. 6. ed. São Paulo:
Cortez, 2007, p. 95.
A interpretação constitucional não é privilégio
dos juristas, mas de todos aqueles que vivem cotidia-
namente as normas constitucionais. Peter Häberle,
em sua obra prima sobre a sociedade aberta dos in-
térpretes da Constituição, propõe uma nova forma de
hermenêutica constitucional, fundada em métodos
que permitam a participação de todos os membros
da complexa sociedade contemporânea, indistinta-
mente.
Segundo o autor, não apenas o juiz, o legislador,
o administrador público e os órgãos estatais seriam
intérpretes da Constituição, mas também todos os
cidadãos e grupos, seja enquanto partes em proces-
sos judiciais, seja enquanto participantes de outros
processos sociais. Do mesmo modo, também são in-
térpretes da Constituição todos aqueles que, direta
ou indiretamente, participam do processo político:
mídia, associações civis, partidos políticos, igrejas,
editoras, escolas etc(1).
Conquanto Häberle trate especificamente do di-
reito constitucional e das normas constitucionais po-
sitivadas, nada impede, antes autoriza, que o seu en-
tendimento seja estendido a todos os demais ramos
do direito e à própria teoria geral, alcançando a com-
preensão emancipatória da racionalidade jurídica. O
processo de concretização dos direitos fundamentais
extravasa os limites dos tribunais e do parlamento.
Não apenas os órgãos estatais interpretam e apli-
cam as normas, mas todos os membros da sociedade,
sejam entes privados, públicos ou pessoas físicas. A
interpretação, portanto, é um processo aberto, plural
e construído pelos atores sociais:
A estrita correspondência entre vinculação (à
Constituição) e legitimação para a interpretação
perde, todavia, o seu poder de expressão quando
se consideram os novos conhecimentos da teo-
ria da interpretação: interpretação é um processo
aberto. Não é, pois, um processo de passiva sub-
missão, nem se confunde com a recepção de uma
ordem. A interpretação conhece possibilidades
e alternativas diversas. A vinculação se converte
em liberdade na medida que se reconhece que a
nova orientação hermenêutica consegue contra-
riar a ideologia da subsunção. A ampliação do
círculo dos intérpretes aqui sustentada é apenas
a consequência da necessidade, por todos defen-
dida, de integração da realidade no processo de
interpretação. É que os intérpretes em sentido
amplo compõem essa realidade pluralista(2).
O conhecimento emancipatório contemporâneo
parte da premissa de que é preciso enfrentar, desde
o início, dois poderosos inimigos: os monopólios de
interpretação, que apenas admitem como correta a
interpretação elaborada por determinados grupos,
previamente autorizados, e a renúncia à interpreta-
ção, que retira do indivíduo a sua capacidade cogni-
tiva e a transfere para outrem, tornando-o submisso
a um poder violador de direitos. O combate a estas
duas mazelas reside na mesma estratégia: a prolifera-
ção de comunidades interpretativas, que vão perfazer
a interminável trajetória do colonialismo para a soli-
dariedade própria do conhecimento-emancipação(3).
Se cada um é autorizado a falar sobre a norma que
vivencia, não havendo, portanto, autoridades deten-
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toras do monopólio de sua interpretação e aplicação,
deve ser conferida relevância e legitimidade a todas
as interpretações que possibilitem uma concretização
de direitos. A concepção de Häberle, desta sorte, está
em consonância com uma sociedade pluralista e que
concede direito de manifestação a todos os agentes
sociais, que deixam de ser expectadores e passam a
ocupar o espaço público que lhes é devido.
6.1 A CRISE DE PARADIGMAS DA
HERMENÊUTICA CONTEMPORÂNEA
Sob a ótica do Estado democrático de direito,
consagrado no art. 1º, caput, da Constituição Fede-
ral, o direito deve ser concebido como instrumento
de transformação social, e não como aporte teórico
e coercitivo para conformação e dominação de gru-
pos de interesses para subtração de direitos e garan-
tias dos cidadãos. A dogmática jurídica positivista,
contudo, é assentada em um paradigma liberal que
sustenta a primazia da normatividade e a assepsia va-
lorativa dos cânones jurídicos.
Há dois pilares que sustentam a dogmática nor-
mativista, que necessitam ser superados para que se
obtenha efetividade para os direitos fundamentais:
1) o modo de produção do direito, desde a etapa
legislativa até a etapa deliberativa, de forma indivi-
dualista, acrítica e meramente reprodutiva, e
2) o paradigma epistemológico da filosofia da
consciência, na dicção de Lenio Luiz Streck(4).
Uma das principais dificuldades a serem enfrenta-
das pelo hermeneuta, na construção de sentido para
os dispositivos constitucionais, é o fato de que ainda
predomina um modo de produção individualista e
fordista do direito, no qual as normas são elaboradas
no escopo de solução individual dos conflitos e há
uma nítida divisão de trabalho (os que pensam e têm
autoridade para estabelecer uma interpretação e ou-
tros que somente reproduzem os standards). Assim,
os códigos privilegiam a solução de litígios envol-
vendo João, Maria e José – na verdade, Caio, Tício e
(4) STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 8. ed.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2009, p. 57-59.
(5) É conhecida a aproximação entre o termo hermenêutica e o deus Hermes, da antiguidade Grega, que seria o intermediá-
rio entre os deuses e os homens. Segundo Junito de Souza Brandão, a imagem do deus alado, pelos gregos, está associada à
trapaça, ao ardil, à astúcia; Hermes era um velhaco, protetor dos próprios amigos e de ladrões. Para maiores esclarecimentos,
vide BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 195-196.
(6) BLEICHER, Josef. Hermenêutica contemporânea. Lisboa: Edições 70, 1980, p. 13-18.
Mévio, tão ao gosto dos doutrinadores – e não há um
modo de pensar disruptivo para o direito. A crise se
instala precisamente porque os conflitos da socieda-
de evoluíram em número e em complexidade expo-
nencial, enquanto os instrumentos para sua solução
cresceram em razão aritmética.
Quanto ao paradigma epistemológico da filoso-
fia da consciência, cumpre retrotrair à fase primeva
da hermenêutica contemporânea até alcançar o lin-
guistic turn e a hermenêutica crítica, para melhor
compreensão do paradigma positivista, dos aportes
teóricos que o sustentam e da crise que atualmente
enfrenta.
Entre os séculos XVII e XVIII, o termo herme-
nêutica(5) era estritamente utilizado para a correta
interpretação da Bíblia, sendo Spinoza o seu maior
expoente. A hermenêutica contemporânea remonta
aos princípios do século XIX, quando Friedrich Sch-
leiermacher reformula a disciplina e a torna maté-
ria ínsita ao âmbito da filosofia, como teoria geral
da compreensão. Segundo Josef Bleicher(6), é possível
distinguir nitidamente três tendências na hermenêu-
tica, que não são necessariamente sucessivas, histo-
ricamente:
a) a teoria hermenêutica, com fulcro nos cânones
kantianos do entendimento, capitaneada por Sch-
leiermacher, Dilthey e por Emilio Betti, sedo que este
último teve influência marcante na hermenêutica ju-
rídica tradicional e no paradigma dominante;
b) a hermenêutica filosófica, sufragada por Gada-
mer, a partir dos ensinamentos de Heidegger e, por
último,
c) a hermenêutica crítica, sustentada por Haber-
mas, com algumas divergências em relação a Gadamer.
Segundo Schleiermacher, a hermenêutica deve-
ria ser considerada como verdadeira teoria geral da
compreensão, capaz de estabelecer os princípios ge-
rais de toda e qualquer interpretação de manifesta-
ções linguísticas. Segundo seu entendimento, todo
pensamento tem de ser exteriorizado por palavras;
logo, não há conhecimento sem linguagem. Por esta

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