A Normatividade dos Princípios

AutorSilvia Teixeira do Vale/Rosangela Rodrigues D. de Lacerda
Ocupação do AutorJuíza do Trabalho no TRT da 5ª Região/Procuradora do Trabalho da PRT 5ª Região
Páginas47-91
4.
A NORMATIVIDADE DOS PRINCÍPIOS
(1) LASSALE, Ferdinand. A essência da constituição. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 6.
(2) LASSALE, Ferdinand. A essência da constituição. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 12.
(3) LASSALE, Ferdinand. A essência da constituição. 6. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 33.
(4) HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991, p. 19.
(5) HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991, p. 14.
A controvérsia sobre a essência da Constitui-
ção, com posicionamentos diametralmente opostos
defendidos por Ferdinand Lassale e Konrad Hesse,
é fulcral para a compreensão da normatividade dos
princípios e para a conclusão, sustentada por Robert
Alexy, de que a densificação dos princípios constitu-
cionais independe da existência de norma infracons-
titucional, bastando para tanto a utilização de um
discurso racional.
Segundo Lassale, sob o aspecto jurídico, é possí-
vel afirmar que “a Constituição é a lei fundamental
proclamada pela nação, na qual baseia-se a organi-
zação do direito público do país(1)”. Entrementes,
no entendimento do autor, a essência é bem diversa
da conceituação jurídica, pois a Constituição nada
mais é que a soma dos fatores reais do poder que re-
gem uma nação transcritos em uma “folha de papel”.
Sendo assim, mesmo que não se tenha o documen-
to constitucional, a folha escrita, os poderes exter-
nos à Constituição continuam sendo determinantes
para o pleno funcionamento do Estado, vez que “o
chefe da nação a quem obedecem o exército e os ca-
nhões também é uma parte da Constituição(2)”. Em
seu entendimento, por conseguinte, a Constituição
somente vincula o Estado na medida em que é politi-
camente ratificada pelos fatores reais de poder, a sa-
ber: a monarquia, as classes dominantes, a burguesia,
os trabalhadores, a Igreja, enfim, todos os atores so-
ciais que possuem interesses econômicos e políticos
a serem defendidos. Uma Constituição escrita, desta
sorte, será boa e duradoura na medida em que cor-
responder à Constituição real e tiver suas raízes nos
fatores do poder que regem o país(3). Segundo o autor,
a Constituição jurídica não terá qualquer relevância
social se os fatores reais de poder não a aplicarem
e não lhe conferirem concretude. Trata-se, portanto,
de vinculação absoluta da eficácia jurídica a uma efi-
cácia social que independe, inclusive, do conteúdo
jurídico que possua a Constituição. As normas cons-
titucionais, portanto, não são dotadas de eficácia, por
si sós, mas estão sempre vinculadas e dependentes
dos fatores reais de poder para sua legitimação e efe-
tividade.
Em posicionamento diametralmente oposto, Kon-
rad Hesse sustenta que a Constituição é formada por
princípios jurídicos que, como quaisquer outras nor-
mas jurídicas, possuem eficácia e espraiam seus efei-
tos por todo o ordenamento. Nesta ordem de ideias,
a Constituição ocupa o cerne de todo o ordenamento
jurídico. Assim, a Constituição será convertida em
força ativa se estiverem presentes, na consciência dos
principais responsáveis pela ordem constitucional,
não só a vontade de poder, mas também a vontade
de Constituição(4). De acordo com Konrad Hesse,
os fatores reais de poder estão implícitos no texto
constitucional, que possui força normativa própria,
motivadora e ordenadora da organização estatal. Para
o autor, a Constituição não significa apenas um “pe-
daço de papel”, como definido por Lassalle, mas é
um conjunto de normas com eficácia própria e força
vinculante.
Neste contexto, Hesse afirma que a separação radi-
cal, no plano constitucional, entre realidade e norma,
entre ser e dever ser, não leva a qualquer avanço na
indagação sobre a essência da Constituição. E pros-
segue o raciocínio asseverando que a eventual ênfase
numa ou noutra direção leva quase inevitavelmente
aos extremos de uma norma despida de qualquer ele-
mento da realidade ou de uma realidade esvaziada de
qualquer elemento normativo(5). Desta maneira,
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CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL DO TRABALHO
a Constituição não configura, portanto, apenas
expressão de um ser, mas também um dever ser, ela
significa mais do que simples reflexões das condi-
ções fáticas de sua vigência, particularmente as forças
sociais e políticas. Graças a pretensão de eficácia, a
Constituição procura imprimir ordem e conformação
a realidade política e social(6).
A força normativa da Constituição significa que
os direitos fundamentais, os valores e princípios
que consubstanciam o seu texto não são meras pro-
messas retóricas, uma carta de boas intenções a ser
cumprida, algum dia, pelo Estado ou ao talante dos
governantes. Tratam-se, muito ao revés, de normas
jurídicas, e como tais são dotadas de eficácia plena
e de coercitividade, que devem ser aplicadas pelos
poderes constituídos e por particulares, em sua ple-
nitude. Em conformidade com este novo paradigma,
não existem normas programáticas, que, de acordo
com a teoria tradicional, são destituídas de eficácia.
As denominadas normas programáticas são progra-
mas de governo, a serem concretizados, ainda que
apenas possuam na atualidade eficácia jurígena e não
ainda social.
Este paradigma defendido por Konrad Hesse
encontra-se no cerne da teoria de Robert Alexy so-
bre a normatividade dos princípios. Em sua tese de
habilitação no doutorado(7), apresentada em 1984 na
Universidade de Göttingen, Robert Alexy desenvolve
a teoria da argumentação jurídica, aplicando-a espe-
cificamente aos direitos fundamentais. Nesta obra,
estabelece a supremacia axiológica no ordenamento
jurídico de um Estado democrático de direito. Em
seu entendimento, a declaração principiológica dos
direitos fundamentais asseguram direitos prima fa-
cie, e que destes é possível extrair, ainda que sem a
intermediação legislativa, direitos definitivos no caso
concreto. E esta densificação dos princípios é pos-
sível, racionalmente, através da aplicação das regras
da interpretação na justificação externa do discurso
jurídico.
Os princípios jurídicos são mandamentos de
otimização, que podem ser realizados em diferen-
tes graus. A determinação de um direito definitivo,
portanto, somente é possível no caso concreto, em
consonância com as condições fáticas e jurídicas sob
(6) HESSE, Konrad. A força normativa da constituição. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1991, p. 15.
(7) Requisito, na Alemanha, para que o portador do título de doutor possa ensinar e orientar outros doutorandos.
(8) COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 12.
enfoque. Desta sorte, não existe uma escala de pre-
valência absoluta entre princípios; a sobreposição de
um ou de outro é sempre condicionada e adstrita aos
fatos e bens jurídicos envolvidos.
A densificação dos princípios para normas que
assegurem direitos denominados definitivos somente
pode ser realizada pelo discurso racional, seguindo-
-se de maneira imprescindível as formas e regras da
argumentação jurídica, a fim de ser alcançada a cor-
reção das conclusões.
Por esta razão, o estudo dos princípios constitu-
cionais é crucial para o estudo dos direitos sociais e
trabalhistas sob a perspectiva emancipatória e huma-
nista, e será realizado, cada um de per si, nos próxi-
mos tópicos.
4.1 PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA
HUMANA
O conteúdo material do princípio da dignidade
da pessoa humana é variável, de acordo com o mo-
mento histórico e com as condições culturais e até
mesmo geográficas em que é analisada a sua essência.
Trata-se, portanto, de um paradigma que tem por ca-
racterísticas a ambiguidade, a vagueza e a porosida-
de, devendo ser preenchido no caso concreto, pelo
intérprete, para efetivação dos direitos fundamentais.
O princípio da dignidade da pessoa humana, de
acordo com Fábio Konder Comparato(8), despontou
na Antiguidade, entre os séculos VIII e II a.C., como
resultado da posição e reconhecimento social do indi-
víduo. Somente eram dignos os membros das classes
mais abastadas. A partir do advento da religião cris-
tã esta concepção se modificou e se difundiu como
imperativo ético, alicerçada precipuamente nos en-
sinamentos teológicos acerca da igualdade entre os
homens. Esta isonomia do cristianismo, entretanto,
em seu período inicial, era apenas no plano divino,
vez que a religião admitiu, durante muitos séculos, a
legitimidade da escravidão e da inferioridade da mu-
lher em relação ao homem.
Durante a Idade Média, e principalmente devido
a São Tomás de Aquino, a dignidade da pessoa huma-
na adquiriu contornos mais próximos do que atual-
mente possui, pois foi elaborado o princípio tendo
A Normatividade dos Princípios
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por fundamento a igualdade material entre todas as
pessoas, a despeito de suas diferenças individuais,
biológicas, culturais ou sociais.
O marco fundamental na filosofia moderna acer-
ca da dignidade da pessoa humana encontra-se, in-
dubitavelmente, em Kant, no século XVIII. Para o fi-
lósofo prussiano, o homem, como todo ser racional,
existe como um fim em si mesmo, não podendo se
tornar objeto (meio) de que uma outra vontade possa
se servir. O embasamento da dignidade, portanto, é a
autonomia da vontade. Afirma que:
A lei moral é santa (inviolável). O homem, con-
quanto bastante profano, deve conceituar a humani-
dade em sua pessoa como santa. Tudo o que existe na
criação e sobre a parte que se tenha suficiente poder,
poderemos empregar como simples meio; unicamente
o homem, e com ele toda a criatura racional, é fim em si
mesmo. É ele, efetivamente, o sujeito da lei moral, que
resulta santa graças à autonomia da sua liberdade(9).
Segundo Kant, a verdade encontra-se nos juízos
universais, absolutos e necessários, sendo um a prio-
ri, ou seja, existindo independente das vicissitudes
da experiência, que é sempre parcial e relativa. As-
sim, a dignidade humana também é uma ideia aprio-
rística, na medida em que existe independentemen-
te das circunstâncias históricas e na medida em que
independe das condições sociais (status, condições
econômicas ou de escolaridade etc.) ou fáticas nas
quais o indivíduo vive. A pessoa, portanto, é digna
porque é um ser racional e, como tal, tem autonomia
da vontade. Por esta razão, não seria jamais admis-
sível que uma vontade sobrepujasse a outra. A par
de todas estas considerações, conclui-se que o pen-
samento de Kant é alinhado com o jusnaturalismo,
que à sua época já não possuía uma matriz teológica,
mas racionalista.
Conquanto o pensamento jusnaturalista tenha
prevalecido durante toda a Idade Moderna, tendo
sido o principal combustível ideológico para as re-
voluções burguesas do século XVIII, que marcam o
início da Idade Contemporânea, o fato é que a De-
claração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de
1789, e a Declaração de Independência dos Estados
(9) KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 69.
(10) PORTUGAL. Constituição da República Portuguesa de 1976. Disponível em: .parlamento.pt/Legislacao/
Paginas/ConstituicaoRepublicaPortuguesa.aspx>. Acesso em: 19 jun. 2020.
(11) ESPANHA. Constituição Espanhola. Disponível em: .boe.es/aeboe/consultas/enlaces/ documentos>. Acesso
em: 19 jun. 2020.
Unidos, de 1776, em momento algum se reportam ao
princípio da dignidade da pessoa humana.
O princípio constou pela primeira vez em um do-
cumento na Declaração Universal dos Direitos Hu-
manos, aprovada em 10 de dezembro de 1948 pela
Assembleia Geral da ONU, em Paris. A partir de en-
tão, muitas outras declarações e convenções interna-
cionais o têm mencionado, e atualmente encontra-se
incorporado ao texto constitucional de inúmeros Es-
tados, inclusive o Brasil.
Nesta linha, afirma a Constituição da Repúbli-
ca Portuguesa, de 02 de abril de 1976, logo em seu
art. 1º, que “Portugal é uma República soberana, ba-
seada na dignidade da pessoa humana e na vontade
popular e empenhada na construção de uma socieda-
de livre, justa e solidária”(10). Já a Constituição Espa-
nhola, em vigor desde 1978, em seu art. 10, também
dispõe que “a dignidade da pessoa, os direitos invio-
láveis que lhe são inerentes, o livre desenvolvimento
da personalidade, o respeito pela lei e pelos direitos
dos outros são fundamentos da ordem política e da
paz social”(11).
A Carta Magna de 1988 também proclama, em
seu art. 1º, inciso III, a dignidade da pessoa humana
como fundamento do Estado democrático de direito
e da República Federativa do Brasil.
O princípio da dignidade da pessoa humana,
como conformador de todo o ordenamento jurídico
pátrio, não é absoluto, podendo entrar em choque
com outros princípios e podendo também ser ponde-
rado e sopesado a depender das circunstâncias fáti-
cas. Por mais relevante que seja, não existe princípio
jurídico absoluto. A par de toda esta digressão acerca
de sua evolução histórica, é possível afirmar, com es-
peque em Luís Roberto Barroso, que
O princípio da dignidade da pessoa humana iden-
tifica um espaço de integridade moral a ser assegurado
a todas as pessoas por sua só existência no mundo. É
um respeito à criação, independente da crença que se
professe quanto à sua origem. A dignidade relaciona-
-se tanto com a liberdade e valores do espírito como
com as condições materiais de subsistência. O desres-
peito a este princípio terá sido um dos estigmas do

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