A falácia indutivista automatizada na tomada de decisões judiciais e o vilipêndio ao devido processo legal

AutorLuis Ferreira de Moraes Filho
Ocupação do AutorMestrando em Direito Constitucional (Universidade Federal do Ceará - UFC). Pós-graduado em Direito Público (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais - PUC-MINAS). Graduado em Direito (Universidade Regional do Cariri - URCA). Procurador do Banco do Nordeste do Brasil S/A (BNB). Instrutor da Universidade Corporativa do Banco do Nordeste...
Páginas1-30
A FALÁCIA INDUTIVISTA AUTOMATIZADA
NA TOMADA DE DECISÕES JUDICIAIS E O
VILIPÊNDIO AO DEVIDO PROCESSO LEGAL
INDUCTIVIST FALLACY AUTOMATED IN COURT DECISIONS
AND THE DISRESPECT FOR DUE PROCESS OF LAW
Luis Ferreira de Moraes Filho
Resumo
: O presente artigo captura e avalia criticamente a compatibilidade do emprego de mecanis-
mos de Inteligência Articial (IA) estruturados segundo o método inferencial indutivista (o qual visa
dar força preditiva a fatos reiterados) - agora alimentados por um banco de informações virtual de
proporções colossais (“BIG DATA”) – com o desempenho da função jurisdicional do Estado brasileiro,
mais precisamente com a automatização das decisões judiciais. Por meio de uma pesquisa bibliográ-
ca, exploratória e de feição qualitativa, o trabalho aborda aspectos substanciais do devido processo
legal (precisamente aqueles relacionados aos princípios do contraditório, do dever de motivação
das decisões judiciais e da isonomia) que seriam afetados caso magistradas e magistrados huma-
nos viessem a ser substituídos por julgadores-robôs no desempenho da função judicante. Ao nal,
aponta para a incapacidade de os mecanismos de IA hodiernos (enquanto ancorados em matrizes
indutivistas de “raciocínio” para projetarem resultados forjados a partir de incontáveis dados colhidos
dentro de recortes espaciais e temporais da experiência humana pretérita) apresentarem soluções
para os diversos litígios submetidos à apreciação do Poder Judiciário, os quais são dinâmicos e ade-
quadamente solucionáveis a partir de inferências abdutivas (derrotáveis por natureza, indicadoras
do que “pode ser” a partir da construção de hipóteses que tentam explicar os fatos observados –sem
limitar-se, portanto, a apenas observá-los e a acumulá-los -, considerando as irregularidades, os episódios
surpreendentes e as perplexidades provocadas pelos acontecimentos do dia a dia), as quais demandam
intuição, criatividade e sensibilidade, elementos estes ainda não mecanizáveis.
PalavRas-chave
: Inteligência articial – Indução – Indutivismo automatizado – Abdução. Decisões
judiciais – Devido processo legal substancial.
abstRact
: The present article captures and critically evaluates the compatibility of Articial Intelli-
gence (AI) mechanisms structured according to the inductivist inferential method (which aims
to give predictive force to reiterated facts) – now fed by a virtual information bank of colossal
proportions (“BIG DATA”) – with the performance of the jurisdictional function in Brazil, more
precisely with the automation of judicial decisions. Through a bibliographical, exploratory and
qualitative research, the work addresses aspects of substantive due process of law (precisely those
related to the postulates of contradictory, the duty to motivate judicial decisions and isonomy) that
would be aected if human magistrates were replaced by robot judges to perform the judging
function. In the end, it points to the inability of today’s AI mechanisms (while anchored in inductivist
“reasoning” matrices to project results created from countless data collected within spatial and
temporal cuts of the past human experience) to present solutions to the various disputes submitted
to the appreciation of the Judiciary, which are dynamic and adequately solvable from abductive
inferences (defeasible by nature, indicators of what “can be” from the construction of hypotheses
that try to explain the observed facts – but not limited to just observe them and accumulate them
–, considering the irregularities, the surprising episodes and the perplexities caused by day-to-day
events), which demand intuition, creativity and sensitivity, elements that are not yet mechanised.
KeywoRds
: Articial intelligence – Induction – Automated inductivism – Abduction – Court deci-
sions – Substantive due process of law.
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LUIS FERREIRA dE MORAES FILhO
2
Sumário: 1. Introdução – 2. Inteligência articial (ia): conceito, breve histórico e estado da
arte – 3. A falácia indutivista (agora “automatizada”) e as inferências construídas por máquinas
na era do big data – 4. O emprego da ia nas atividades desenvolvidas pelo poder judiciário
brasileiro – 5. Juízes-robôs e o princípio constitucional do devido processo legal; 5.1 Decisões
judiciais automatizadas e o princípio do contraditório; 5.2 Decisões judiciais automatizadas e
o dever de motivação das decisões judiciais; 5.3 Decisões judiciais automatizadas e o princípio
da isonomia – 6. Considerações nais – 7. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Em 10 de março de 1893, noticia Matos1 o episódio, Machado de Assis havia
tomado conhecimento de que um magistrado teria determinado a um escrevente
a enumeração das páginas de um processo judicial a partir das folhas 1.010, ao
que reagiu, em crônica publicada na Gazeta de Notícias,2 nos termos seguintes
(sem destaques no original):
O despacho não diz quantas são as folhas por numerar, nem a imaginação pode calcular
as folhas que terão de ser ainda escritas e ajuntadas a este processo. Duas mil? Três mil? [...]
É caso para inventar um el mecânico, um velocípede consciente, mais rápido que o homem,
e tão honrado. [...] Quando o velocípede assim aperfeiçoado entregar autos e recolher os
recibos no protocolo, pode ser aplicado às demais esferas da atividade social, e teremos
assim descoberto a chave do grande problema. Dez por cento da humanidade bastarão
para os negócios do mundo. [...] Talho em grande; não sou homem de pequenas vistas nem
de golpes à or.
Satírica e genial, a pena machadiana predisse, com um século de antecedên-
cia, o advento de tecnologias disruptivas que promoveriam, nas palavras do Min.
Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal (STF), o “sepultamento da era analógica
e o resplandecer da era digital”,3 capaz de promover, esta última, a conexão de
1. MATOS, Miguel. Código de Machado de Assis. Migalhas Jurídicas. São Paulo: Migalhas, 2021, E-book
Kindle, p. 404-407.
2. “Jornal carioca diário fundado em 2 de agosto de 1875 por José Ferreira de Sousa Araújo. Introduziu
uma série de inovações na imprensa brasileira, como o emprego do clichê, das caricaturas e da téc-
nica de entrevistas, chegando a ser um dos principais jornais da capital federal durante a Primeira
República.” Cf. CPDOC. Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil.
Verbete Temático. Disponível em: http://cpdoc.fgv.br/sites/default/les/verbetes/primeira-republica/
GAZETA%20DE%20NOT%C3%8DCIAS.pdf. Acesso em: 14 fev. 2022.
3. Ao tomar posse como Presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e, consequentemente, como
Presidente do referido Conselho no dia 10 de setembro de 2020, o Min. Luiz Fux, em discurso solene,
apontou um Plano de Gestão do Poder Judiciário brasileiro estruturado em cinco grandes eixos, entre
os quais destacou o “sepultamento da era analógica e o resplandecer da era digital” mediante a criação,
em primeira instância, de juízos 100% digitais, “em que todos os atos processuais serão realizados de
forma eletrônica e remota e com juízes acessíveis a todos os jurisdicionados, sem a necessidade de
uma estrutura física para o seu suporte”. O conteúdo de tal discurso, dias depois, ganhou o primeiro
fôlego de vida por meio da aprovação, pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em 6 de outubro de
2020, de ato normativo que regulamenta a atuação das varas judiciais do país em formato inteiramente
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