Justiça, república e liberdade: o caso da França

AutorMichelle Gueraldi
Páginas267-307
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JUSTIÇA, REPÚBLICA E LIBERDADE:
O CASO DA FRANÇA
Michelle Gueraldi 1
Resumo: A pluralidade característica da sociedade francesa contem-
porânea revela-se desafiadora aos valores republicanos, em razão de
conflitos entre as tradições seculares e religiosas. A resposta do po-
der político inclui a limitação do exercício de liberdades, como as de
expressão religiosa, para o fim da integração e proteção dos vínculos
comunitários nacionais. Assim como a igualdade e a fraternidade, a
liberdade constitui um dos pilares da república francesa, e são bens
universalizados como fundamentais para a vida humana. Por esta ra-
zão questiona se são justas as políticas públicas que regulam o exer-
cício da expressão da fé religiosa no país. Destaca, neste contexto, a
tensão que permeia a relação entre a comunidade islâmica francesa
e o poder público, cujas ações seguem orientação laica. Ao inconfor-
mismo de cidadãos de fé islâmica com a regulação das liberdades
públicas somaram-se episódios de violência cuja autoria é assumida
por membros desta comunidade. A adoção de medidas para a restau-
ração do bem comum tornou-se urgente e, assim, a regulação da li-
berdade de expressão religiosa, além de guardar função social inte-
gradora, se consolidou como medida de segurança, dentre outras
ações do Estado investido em renovar o pacto republicano e assim
afastar o separatismo. Pretende contemplar este caso através do viés
comunitarista impresso na obra de Michael Walzer e Michael J. San-
del, em cuja matriz teórica e metodologia própria ampara a análise
1 A autora é doutoranda na Faculdade de Direito da UERJ (Universidade do Estado
do Rio de Janeiro), mestre em Direito pela Harvard Law School, au tora de Em
Busca do Éden: tráfico de pessoas e direitos humanos, experiência brasileira e pes-
quisadora sobre direitos humanos, direito internacional e filosofia.
E-mail: michellegueraldi@gmail.com
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proposta, para fins de refletir se é justa a política de limitação à li-
berdade de expressão religiosa na França, na atualidade.
Palavras-chave: Justiça; comunitarismo; França; liberdade; reli-
gião.
1. INTRODUÇÃO
A França atravessa um período turbulento desde os ataques
do 13 de novembro de 2015, quando centenas de pessoas, entre mor-
tos e feridos, foram vítimas de ataques armados de feição terrorista
em Paris. Comparado com os episódios do 11 de setembro de 2001
nos Estados Unidos da América, o episódio do 13 de novembro tem
sido apontado como o maior ato terrorista em solo europeu, ambos
de autoria de fundamentalistas islâmicos. A despeito das políticas de
isolamento impostas pela pandemia pelo COVID-19, o Presidente
Macrón anunciou em meados de 2022 que os serviços de segurança
franceses teriam impedido dezenas de ataques terroristas no país ao
longo de seu governo.
Aos episódios de violência tem sido atribuídas motivações
religiosas, pelas declarações dos seus autores, nem sempre em rea-
ção a uma política de Estado, mas a expressões culturais laicas que
constituem a identidade nacional. Integra este quadro a limitação à
expressão religiosa em instituições educacionais e espaço público, o
que tem sido fonte de conflitos sociais e debate público.
Há no país uma expressiva comunidade islâmica cuja inte-
gração desafia o poder político que, portanto, busca a formação de
um consenso em torno de valores republicanos e afastar o separa-
tismo. Pretende compreender mais profundamente a resposta insti-
tucional do Estado francês a estes desafios pelo viés do pensamento
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comunitarista, especificamente de Michael Walzer e Michael J. San-
del. Amparada nesta matriz teórica e metodológica, propõe analisar
se é justa a limitação à liberdade de expressão religiosa e por quê.
Para tanto, na parte 1, traça os contornos da pluralidade par-
ticular da sociedade francesa, e para tanto narra a trajetória da laici-
dade do Estado Francês, pela perspectiva das leis adotadas no país,
neste sentido, que passam pela separação entre igreja e Estado, pela
regulação da educação religiosa e da ostentação de símbolos religi-
osos em escolas públicas, em espaços públicos, até a atual proposi-
ção de projeto de lei contra o separatismo e pela reafirmação de va-
lores republicanos. Em seguida, aborda o conceito de pluralismo, a
fim de introduzir reflexões sobre a sua feição na sociedade francesa
atual. Na parte 2, inicia a exposição do pensamento comunitarista
de Walzer, especialmente o que importa à compreensão do conceito
de justiça em sociedades plurais contemporâneas. Para tanto, são
contemplados o pluralismo e a justiça, e elementos conceituais que
integram sua matriz teórica, como a teoria dos bens sociais e suas
esferas autônomas de distribuição, igualdade complexa, predomínio
e monopólio, poder político, cidadania ativa e patriotismo.
A fim de melhor aplicar estes conceitos de filosofia política
ao caso francês, inclui considerações do autor sobre a constituição
de bens sociais conforme a identidade nacional de um povo, como o
‘americano’, assim designado pelo autor o nacional dos Estados Uni-
dos da América, e o francês. Por fim introduz ao significado da lai-
cidade na França, enquanto bem social e agrega algumas marcas ins-
titucionais desta identidade cultural. Em seguida, reproduz análise
de Sandel sobre a respostas institucionais em que está em pauta o
tema da justiça, particularmente em casos controversos, como os que
envolvem as políticas de Ação Afirmativa e demais casos especiais
de difícil solução, como o da regulação do aborto, temas como a res-
ponsabilidade moral pela escravidão, dentre outros. Sustenta que
Sandel oferece base teórica fundamental para que o problema em tela
possa ser analisado na dimensão proposta. Destaca sua abordagem

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