Limites à prot eção de dados: dragnet surveillance e o caso marielle franco, de acordo com recente julgamento da terceira seção do STJ

AutorEugênio Facchini Neto
Páginas127-149
LIMITES À PROTEÇÃO DE DADOS:
DRAGNET SURVEILLANCE E O CASO MARIELLE
FRANCO, DE ACORDO COM RECENTE
JULGAMENTO DA TERCEIRA SEÇÃO DO STJ
Eugênio Facchini Neto
Doutor em Direito Comparado (Florença/Itália). Mestre em Direito Civil (USP). Professor
Titular dos Cursos de Graduação, Mestrado e Doutorado em Direito da PUC/RS. Profes-
sor e ex-diretor da Escola Superior da Magistratura/AJURIS. Desembargador do TJ/RS.
Sumário: 1. Introdução. 2. O caso Marielle Franco (STJ, 2020). 3. O uso da dragnet surveillance no
Brasil. 4. O caso Carpenter v. United States (USSC, 2018). 5. O que está em jogo: da velha privacidade
à atual proteção de dados. 6. Proteção de dados e direitos da personalidade. 7. A relativização da
proteção de dados. 8. Considerações nais. 9. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Ao longo da história, a humanidade experimentou a introdução de tecnologias
tão impactantes que mudaram a forma de existir. Quando isso ocorre, diz-se que se
trata de um fenômeno revolucionário. Assim ocorreu, pela primeira vez, há dez mil
anos atrás, com a primeira grande revolução, a agrícola, que permitiu a sedentarização
humana e o início do processo civilizatório.
Foi necessário aguardar outros 9.700 anos para se chegar a uma outra grande
revolução que tivesse semelhante impacto transformador – a referência, agora, é
à revolução industrial, a partir de meados do século XVIII. Ela foi representada
principalmente pela substituição da força humana pela energia mecânica, em razão
da invenção da máquina a vapor e suas aplicações. Atualmente, esta é chamada de
primeira revolução industrial, pois a ela se sucederam novas revoluções igualmente
disruptivas, como a segunda revolução industrial, a partir do f‌inal do século XIX e
início do século XX, com o advento da eletricidade, que impactou o modelo industrial,
com a criação da linha de montagem e a produção em massa. A terceira revolução
industrial teria ocorrido a partir dos anos sessenta, em razão do advento da com-
putação e, por volta dos anos noventa, da internet. É a chamada revolução digital.
Em 2016, Klaus Schwab publicou obra intitulada “A Quarta Revolução Indus-
trial”1, que é o nome que ele dá à época em que passamos a viver nas duas últimas
décadas, como um aprofundamento da revolução digital. Ela é caracterizada “por
1. SCHWAB, Klaus. A Quarta Revolução Industrial. Trad. por Daniel Moreira Miranda. Bauru/SP: EDIPRO,
2019.
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uma internet mais ubíqua e móvel, por sensores menores e mais poderosos que
se tornaram mais baratos e pela inteligência artif‌icial e aprendizagem automática
(ou aprendizado de máquina).” A razão do seu caráter disruptivo em relação à
terceira revolução industrial é que essas novas tecnologias estão se tornando mais
sof‌isticadas e integradas, envolvendo a fusão e interação de domínios físicos,
digitais e biológicos, abrangendo aspectos tão distintos quanto sequenciamento
genético, nanotecnologia, energias renováveis e computação quântica. Tudo isso
implicou o advento de tecnologias que estão novamente transformando a maneira
como vivemos, como evidenciam os fenômenos do bitcoin, blockchain, economia
compartilhada, impressão em 3D, aplicações cada vez mais extensas da inteligência
artif‌icial etc.
Também se usa a expressão Indústria 4.0, cunhada em 2011, por ocasião da Feira
de Hannover, para identif‌icar esse período.
Tudo isso está transformando a maneira como vivemos. Mas há algo que nos
toca ainda mais de perto e que teve seu início com o desdobramento da terceira revo-
lução industrial, com o advento da internet. A rede transformou a maneira como nos
relacionamos com o mundo e com as pessoas. Aos poucos, todos fomos migrando
boa parte de nossas vidas para o mundo digital. Esse passou a ser o mercado onde
compramos produtos e serviços, nossa fonte primeira de informações sobre o mundo
e sobre as pessoas, além de ser o espaço predominante para os contatos pessoais. Suas
aplicações são múltiplas e as vantagens inf‌initas.
Todavia, ao navegarmos na rede, deixamos pegadas, rastros, em quantidades
imensas. Com o uso de tecnologia (inteligência artif‌icial, algoritmos e machine
e deep learning), é possível agrupar e tratar esses volumosos dados esparsos (big
data), a ponto de fazê-los revelar quem somos, do que gostamos, o que pensamos.
Isso tem um valor econômico incomensurável, pois permite o direcionamento de
publicidade adequada a cada perf‌il. Mas também suscita preocupações, diante de
potenciais usos indevidos desse conhecimento, inclusive para tentar inf‌luenciar
pessoas na sua vivência democrática, como episódios ocorridos nos últimos anos
revelaram.
Todavia, não são apenas os agentes econômicos que se utilizam dos dados
pessoais como relevantíssimo ativo empresarial, atualmente imprescindível para
atividades econômicas. No âmbito do poder público, os dados pessoais continuam
cruciais para a formulação e implementação de boa parte das políticas públicas2. De
2. Além disso, “permanecem, latentes e plausíveis, porém, as hipóteses de rastreamento e controle invisível
por parte do governo como perigo potencial para um futuro, que inclusive pode tomar proporções trágicas
caso sociedades totalitárias tenham acesso às tecnologias necessárias” – mas não só por elas, já que o sistema
Echelon de vigilância (rede de rastreamento global de telecomunicações) teria sido formado por países que
compõem sólidas democracias modernas, como os Estados Unidos, Inglaterra, Canadá, Austrália e Nova
Zelândia – nestes termos, DONEDA, Danilo. Da privacidade à proteção de dados pessoais. 2. ed. rev. e atual.
São Paulo: Thomson Reuters Brasil/Revista dos Tribunais, 2019, p. 37/38 e n.r. 26.

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